A violência doméstica deprime-me
Talvez porque sei de mulheres que falam baixinho para não acordar a fúria. Talvez porque vi olhos de criança que aprenderam demasiado cedo a não chorar. Talvez porque me lembro daquela vizinha que fugiu de casa de madrugada, pés descalços, o sangue a pingar da testa, e ninguém fez nada.
A violência doméstica deprime-me porque se repete, porque se
propaga como um vírus nos corredores de prédios velhos e nos becos de bairros
novos, nos sorrisos cortados pela metade das mulheres que dizem estar tudo bem,
nos homens que batem porque podem, porque sempre puderam, porque lhes ensinaram
que amar também se faz à pancada.
Deprime-me porque vejo o mundo avançar, a tecnologia a
crescer, os carros a andar sozinhos e a inteligência artificial por todo o
lado, mas ainda há gente que fecha a porta de casa e transforma a sala numa
arena, onde cada insulto é um soco e cada noite é um campo de batalha.
Deprime-me porque o medo tem cheiro, e eu já o senti. Na
roupa lavada das vítimas que tentam esconder as nódoas negras debaixo de blusas
de gola alta em pleno Verão. No hálito nervoso das crianças que pedem para não
voltarem para casa. No silêncio cúmplice dos vizinhos que fingem não ouvir os
gritos.
Há uma banalização assustadora nisto tudo. Um hábito
insuportável. Uma aceitação disfarçada de impotência. “É um assunto de casal”,
dizem. “Ela provocou-o”, sussurram. “Eram os nervos”, desculpam. Como se
houvesse desculpa possível para o punho cerrado. Como se houvesse explicação
que não fosse a brutalidade pura, seca, triste, desgraçada.
A violência doméstica deprime-me porque é uma herança
maldita que passa de geração em geração. Pais que batem tornam-se avós que
batem. Filhos que vêem batem também. E o ciclo continua, como um relógio sem
ponteiros, sempre na mesma hora escura.
E nós? Ficamos sentados à espera da próxima notícia de uma
mulher assassinada? Fechamos os olhos quando uma amiga nos confessa que ele a
empurrou contra a parede, mas não foi nada? Viramos a cara quando ouvimos uma
discussão violenta do outro lado da parede?
A violência doméstica deprime-me. Mas mais do que isso,
enfurece-me. Revolta-me. Devia revoltar-nos a todos. Porque não há nada mais
indigno do que uma casa que se transforma numa prisão. E nada mais criminoso do
que um amor que se veste de ódio e tem cheiro a medo.
Janeiro 2025
Nuno Morna
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