O Dia em que Portugal Descobriu que Podia
A cabeça fervilha, as mãos suadas sobre os joelhos, o coração a latejar como se alguém lhe tivesse metido dentro um bombo maluco, e os olhos presos no ecrã, naqueles tipos que se atiram uns contra os outros, ombro no ombro, gritos nas bancadas, um treinador qualquer a vociferar como um padre em missa de corpo presente. O andebol sempre foi o meu desporto, uma espécie de luta de rua com regras. Mas agora, agora que Portugal está ali, a disputar o lugar entre os grandes, agora que cada passe, cada remate, cada defesa conta como se fosse o último momento da tua vida, roo os dedos. Entendo que há coisas que se fazem com os músculos e com o cérebro, mas acima de tudo com esse fogo que só algumas pessoas têm, esse impulso de não se renderem, de não aceitarem a ordem natural das coisas, de não se verem como coitadinhos, de não estarem sempre a contar os tostões do seu destino.
Ver um deles, aquele miúdo que ninguém dava nada por ele, enfiar-se pelo meio dos alemães como quem se enfia por uma ravina sem saber se vai sair vivo do outro lado. O guarda-redes deles levanta-se como um muro de betão, os braços enormes, e por um instante parece que o tempo congela, tudo em silêncio, até o próprio narrador na televisão deixa escapar um “ai meu Deus”, e depois a bola passa-lhe por baixo, um coelho enfiado num buraco improvável, e a malta explode, os comentadores engasgam-se, o teu vizinho bate na parede porque está a ver o mesmo jogo do outro lado, os putos na rua começam a gritar “Portugal! Portugal!” e tu sentes que, nesse instante, a vida faz sentido.
E no prolongamento há aquela sensação de que a tragédia espreita, porque somos portugueses e estamos habituados a que a sorte nos escape no último minuto, a que o árbitro nos roube um sonho, a que a barra nos devolva o remate, a que um alemão qualquer nos ponha a mão no ombro e nos empurre de volta para a nossa insignificância. Só que hoje não. Hoje há qualquer coisa diferente. Hoje os gajos têm os olhos de quem já esteve no inferno e voltou. Hoje há um passe impossível, há um último remate, há um grito que se solta, e os alemães olham-nos como se não percebessem, como se isto não pudesse estar a acontecer, porque Portugal não ganha a Alemanha no andebol, porque Portugal não pode estar numa meia-final, porque Portugal não pode, porque Portugal nunca pôde. Mas pode. Hoje pôde. E eu, sentado no sofá, sozinho na sala, com a televisão ainda a berrar e as luzes dos telemóveis a piscarem como um enxame de pirilampos, pensei: “Fo#%-se. Se calhar ainda somos capazes de alguma coisa.”
Janeiro 2025
Nuno Morna
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