O Prato Vazio: Como a Política Decide o que Comemos

Ouvi ontem, na TSF, uma entrevista de Miguel Poiares Maduro. Falava-se de um evento no Museu Soares dos Reis, no Porto. Falava-se de comida. Da comida que nunca é só comida. A dada altura, disse-se: “tudo é comida e a comida está em tudo”. A frase ficou ali, suspensa. A conversa continuou, mas aquela ideia ficou a martelar. Entranhou-se. A comida não é só o que pomos na boca. Está na economia, no poder, no que somos. A conversa foi brilhante, cheia de desvios, cheia de retornos. Daquelas que não acabam quando terminam. Que ficam em nós. A fazer pensar.

O que comemos nunca foi apenas comida, nunca foi só pão, carne, fruta, nunca foi apenas o acto banal de mastigar e engolir e seguir em frente, como se tudo aquilo que entra na boca não tivesse antes atravessado um emaranhado de histórias, de interesses, de comandos invisíveis, de dedos gordurosos que contam notas atrás de secretárias pesadas, de engrenagens que giram num barulho surdo, abafado, como o ruído de fundo de um país que não percebe onde acaba o seu corpo e começa a mão do Estado. O que comemos foi sempre um campo de batalha, uma guerra sem tiros nem bandeiras, um sítio onde se joga, sem que nos apercebamos, o destino de povos, de economias, de políticas que nascem nos corredores de Bruxelas e se derramam em leis ininteligíveis, nos jornais oficiais que ninguém lê.

O que comemos não nos pertence. Não há arroz, nem carne, nem peixe, nem leite que não tenha passado antes pelo crivo de alguém que decide por nós. Roma distribuía trigo aos pobres para que não se revoltassem, Napoleão conservava comida para os seus soldados continuarem a andar sem olhar para trás, Estaline arrancava campos e bocas e vidas para impor um país à força, os americanos lançaram a praga do milho barato para alimentar uma América artificial e agora o mundo é um mundo de supermercados imensos, corredores brilhantes, embalagens que sussurram promessas de saúde, de força, de felicidade, enquanto os olhos cansados das caixas registadoras passam código atrás de código, números e mais números, tostões e mais tostões, até que o sistema nos regurgite para fora e nos empurre para a vida com os sacos plásticos finos a rebentarem na esquina.

Não há escolha. Há supermercados, há mercearias, há bancas de legumes debaixo dos toldos sujos do mercado, mas não há escolha, porque tudo já foi decidido antes. Os subsídios impõem o que se cultiva, as quotas impõem o que se pesca, as taxas impõem o que se pode ou não vender, e nós encolhemos os ombros e escolhemos entre duas embalagens idênticas, acreditamos que escolhemos quando tudo foi escolhido por nós.

E depois vêm os outros, os que se preocupam, os que nos querem ensinar a comer, os que nos querem dizer que a carne faz mal, que o açúcar é veneno, que o sal é veneno, que tudo é veneno excepto aquilo que eles aprovam, e impõem regras, taxas, campanhas, e nós mastigamos culpa em cada dentada, engolimos remorsos entre garfadas. Porque há um mundo ideal lá fora onde ninguém come carne, ninguém desperdiça nada, ninguém cozinha com gordura, ninguém bebe álcool, ninguém faz nada que não seja um reflexo da sua mais pura virtude. E nesse mundo, nesse mundo que não existe, mas que já se impõe, nesse mundo onde se nos diz o que podemos e não podemos meter no prato, nesse mundo já não há lugar para nós.

A comida é política e sempre foi. O pão que nos metem na mesa já vem dividido antes de chegar às nossas mãos. O peixe vem contado, pesado, limitado por acordos internacionais assinados em salas vazias. A carne é medida e taxada e anunciada como o fim do mundo por homens com fatos de linho que nunca conheceram a fome. A Europa depende das importações para comer e treme à mais pequena crise, e os seus líderes olham para os campos abandonados, para os tractores parados, para as fábricas de alimentos vazias, e falam de sustentabilidade, de eficiência, de alternativas. Dizem-nos que o futuro é verde e que devemos adaptar-nos. Dizem-nos que, em breve, comeremos insectos e que será normal. Dizem-nos que é para nosso bem.

E nós mastigamos, sem responder, sem pensar muito, empurrando com goles curtos de vinho barato, saboreando pela última vez as coisas que um dia foram simples, que um dia pertenceram a quem as comia, que um dia foram apenas comida antes de se tornarem mais uma peça da grande máquina que nunca dorme.

Fevereiro 2025

Nuno Morna



Comentários

  1. Muito bom texto, Nuno. Uma visão real e de certa forma crua (ou não estivéssemos a falar de comida) sobre o que nos vem parar à mesa. Obriguei-me a comentar por ser uma coisa que já algumas vezes pensei. Lembro -te de quando era pequeno e o meu avô trabalhava a terra para termos couve, batata, semilha, feijão, tomate e, no Natal, carne de porco para toda a família. E aí a comida era muito mais do que nos chegava à mesa, era todo o esforço dos dias que corriam.

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    1. Muito bem, meu amigo. Até naquilo do "somos o que comemos" estamos condicionados. Isto de olhar tudo a preto e branco, sem olhar para os pequenos nadas que fazem o todo, tem consequências. Grande abraço.

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