A Ilha Onde a Política Usa Cachecol.

Na Madeira, a política não é política, é uma coisa mole, húmida, que cheira a mofo, é um ritual supersticioso herdado como os nomes repetidos nas famílias ou a missa das sete aos domingos, e os partidos não são partidos, são clubes, são feiras, são grupos folclóricos onde se dança com a mesma cara durante anos e anos, anos e anos de beijos nas testas dos eleitores, de mãos suadas apertadas nos arraiais, de promessas repetidas com voz melosa, sempre a mesma cassete, sempre a mesma palmadinha nas costas, sempre o mesmo “conte connosco”. E os eleitores, pobres diabos, respondem “sim senhor doutor, sim senhor engenheiro, Deus lhe pague”, como se o voto fosse uma esmola, como se a cruz no boletim fosse um favor que se pede, um perdão que se compra, um medo que se carrega.

Os partidos são equipas de futebol, com cachecóis e tudo, e os líderes, esses homens tristes com rugas falsas de preocupação, esses homens pequenos com sapatos engraxados demais, são tratados como o Ronaldo depois de um golo na selecção, e se alguém diz “não gosto”, se alguém pergunta “mas o que é que ele fez?”, leva logo com os insultos do costume, vendido, ingrato, filho da oposição, como se discordar fosse uma doença, uma traição ao sangue, um vírus maligno transmitido com o toque, como se o eleitor fosse um animal de quinta e o voto a palha que lhe atiram. E o mais triste, o mais miserável, é que tudo isto não nasceu por acaso, não caiu do céu como a chuva de Dezembro, foi construído devagarinho, com a precisão do relojoeiro que já não vê bem, mas ainda monta o mecanismo, foi montado por décadas de PSD com mãos macias de quem já não precisa de fazer força para agarrar.

O círculo da dependência, esse monstro pegajoso que cobre a ilha como a humidade em casas onde nunca entra sol, não é teoria, não é boato, não é invenção de frustrados: é o sistema. É a mãe de todas as verdades. Os empregos passam pelo partido. Os projectos passam pelo partido. As nomeações, os subsídios, as pequenas reformas nas juntas, a luz da estrada ao pé de casa, o arranjo das veredas, a rampa para a pessoa com deficiência, tudo, tudo passa pelo partido, e quem não passa pelo partido, quem não beija o anel ao cacique da freguesia, que se amanhe, que se cale, que não se atreva a levantar a cabeça, que não ponha os filhos a sonhar. Esta ilha, que é tão bonita quando vista de longe, é um enredo apertado de favores e de culpas, um bordado cinzento de silêncios, um lugar onde o mérito cheira a ameaça e a diferença a pecado.

E os líderes, sentados nas suas cadeiras de couro gasto, habituados ao poder como quem se habitua à dor nas costas ou ao barulho do frigorífico velho, já nem precisam de ameaçar, basta estarem. A presença basta. O nome basta. A memória basta. Porque tudo está de tal forma montado, de tal forma encenado, que já ninguém estranha, já ninguém reage, e quando alguém tenta levantar a voz, quando alguém tenta explicar que o rei vai nu, que a democracia está feita num farrapo, que os debates são óperas cómicas sem música nem drama, há logo um coro a dizer “é escusado”, “sempre foi assim”, “eles são todos iguais”, como se o cansaço fosse uma forma de lucidez, como se desistir fosse uma espécie de inteligência prática.

E, há quem tente, há quem insista, há quem ainda acredite que esta terra pode ser mais do que uma extensão da vontade de meia dúzia de homens com currículo de favores e medo de perderem o tacho. Mas esses, os que tentam, são olhados com pena ou com ódio, são apontados como desestabilizadores, são os “divisionistas”, essa palavra que se diz com os lábios apertados como quem cospe, como quem tem nojo, porque dividir, nesta terra, é lembrar que se pode escolher. E escolher, aqui, é heresia.

A democracia existe, sim, no papel. Nos boletins, nas urnas, nas conferências de imprensa, nas declarações solenes do dia da Região. Mas é uma democracia de cenário, uma peça de teatro com cenários de cartão e actores que nem precisam saber o texto, uma coisa triste com palmas automáticas e sorrisos falsos, uma máquina velha que ainda funciona porque ninguém se atreve a desligar.

Enquanto a política for uma bancada de estádio, e os partidos claques com tambores, e os eleitores figurantes calados à espera de uma bucha, isto não muda. E não muda porque não se quer que mude. Porque mudar dá trabalho. Porque mudar é perigoso. Porque mudar exige que as pessoas deixem de ser criadas de sala de quem manda e passem a ser senhores da casa.

E essa, talvez, seja a maior tragédia da Madeira: ter gente capaz, gente séria, gente com futuro, e ter ensinado essa gente toda a baixar a cabeça.

Março 2025

Nuno Morna



Comentários

Mensagens populares deste blogue

Silêncio Frio: O Funeral Turístico do Ribeiro

O Dia em que o JPP se Demitiu de Santa Cruz.

O cadáver adiado que se recusa a sair de cena.