Vou votar. Mas não em qualquer canalha.

Vou, vou votar, embora saiba que nada muda verdadeiramente e que por trás dos sorrisos de campanha há sempre um gabinete onde pouco se produz, um carro com motorista, uma conta num banco que não tem balcões nem senha de espera, vou votar porque ainda me resta esse gesto, essa pequena violência que me pertence, como me pertencem os ossos, os livros antigos e a fotografia da minha mãe com os olhos semicerrados pelo sol.

Não voto por patriotismo, nem por esperança, nem por essa coisa abstracta e desenxabida que se chama dever. Voto porque me custa demais ver a minha mão vazia. Porque é um dos últimos lugares onde ainda posso ser dono de mim.

E porque é meu, o voto, não o entregarei a qualquer um. Não o darei a cretinos, não darei o meu voto a crápulas, não o darei aos que usam gravata com a confiança dos imbecis nem aos que falam de “pessoas” como quem fala de números.

Respeito demasiado o meu voto para o gastar em gente pequena.

E cada vez que entro na cabine, há um silêncio que me lembra a igreja de quando era criança - esse silêncio onde, se escutarmos bem, se ouve a respiração do país inteiro. E é nesse instante que separo os homens dos bonecos, os que hesitam dos que decoraram o discurso, os que têm medo de falhar dos que já falharam e não sabem. Dos que nunca tentaram.

Não me comovem com o “voto útil”. A utilidade é um modo disfarçado de desistência. É o nome novo da cobardia. Eu não voto com medo. Nunca votei com medo. Nem mesmo quando o medo era a única coisa que tínhamos.

Vou votar, sim. Mas voto por mim, e não por eles. Por aquilo que ainda sou, por aquilo que ainda recuso deixar de ser. Se encontrar alguém (um nome, uma sigla, um resquício) que me pareça não ter vergonha de pensar, de duvidar, de resistir, votarei nesse alguém. Com a tristeza serena de quem sabe que não há salvação, mas talvez haja dignidade.

Porque a democracia não é um hino, nem uma festa, nem um “slogan”.

A democracia é este gesto pequeno, quase invisível, de ainda ter coragem para escolher.

E eu, apesar de tudo, ainda escolho.

Março 2025

Nuno Morna



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