A Alma da Casa Caída (com palavras nossas)
O Solar do Engenho, que em tempos também se chamava Solar das Meninas Leais, nome de promessa e de juramento antigo, nome de honra da terra, foi-se abaixo como se fosse uma cabra velha e sem préstimo.
Foi-se como se fosse apenas mais um camalhão, mais uma bossa no caminho daquilo a que chamam progresso, e que por cá é quase sempre sinónimo de descasca, de encangalhanço, de destruição feita com cara séria e mãos no bolso.
E ninguém, absolutamente ninguém, se enxovalhou com isso.
Passaram por cima da memória como quem passa por cima do canastro cheio de lenha, tropeçando mas fingindo que não caiu.
E a casa, aquela casa feita de cantaria rija, de janelas com alma, de árvores com sombra de bisavó, caiu. Caiu como caem os velhos a quem já ninguém quer dar sopa. Caiu sem chorar, mas com um estrondo mudo que ficou na cabeça dos que ainda sabem o que é uma casa com alma.
Dizem agora, e dizem com ar de quem conta bezerros para distrair, que a arriba era perigosa, que podia haver uma derrocada. Derrocada, pois claro, mas a verdadeira não é a da terra. É a da gente. A nossa derrocada está na cabeça, no coração, no miolo entupido de quem manda nesta terra como quem manda num chiqueiro.
Com mais pressa do que juízo, com mais interesse do que respeito, com mais batota do que benfeitoria.
E não digam que foi só uma casa. Foi o abrigo da história. Foi a memória de um tempo em que ainda havia vergonha. Foi o espelho do que fomos. E agora está tudo esbambalhado.
No seu lugar virá, com certeza, um hotelzinho com nome em inglês e cheiro a ambientador de casa de banho. Com um “spa” onde talvez pendurem uma fotografia antiga do solar que deixaram morrer, como quem exibe a caveira de um avô na sala para impressionar visitas.
Os que deixam cair estes solares são os mesmos que se escangalham com discursos sobre valorização do património e identidade cultural. Falam com o peito cheio de vento, mas na verdade são só gambernos bem vestidos, sempre de olho no brozilhão, no carcanhol, no dinheiro fácil que vem de Bruxelas ou de qualquer esquina onde se vendam os ossos da terra.
E o povo, esse, anda amurado, sem ânimo, sem voz, a ver as pedras caírem como se fossem folhas secas de outono.
Um dia, quando tudo estiver tapado com hotéis de quatro estrelas e calçada de plástico, talvez alguém pergunte onde está a Madeira. E haverá quem responda que ficou debaixo das pedras que deixámos cair.
Como a balsa partida no fundo do tanque. Como a alma do solar, agora enterrada sem missa, sem comadre, sem vela.
Falta-nos garra.
Falta-nos vergonha.
Falta-nos a coragem de dizer, em alto e bom som, que isto é uma vergonha do diabo e que não havemos de deixar que nos levem tudo até à última pedra.
Porque uma terra sem memória é só isso. Um amontoado de casas sem nome, com gente sem voz, governada por bestuns que se acham senhores.
E o Solar das Meninas Leais foi só mais uma vítima desse esquecimento de betão.
Mas não esquecemos.
Ainda há quem não esqueça.
Abril 2025
Nuno Morna
Fotografias © Professor Emanuel Gaspar
Comentários
Enviar um comentário