O Meme que ofendeu os moralistas de cartão.
[Ou as minhas aventuras no Ministério Público]
Este assunto tem-me irritado. Na semana passada fui chamado ao Ministério Público para prestar declarações e estive lá, sentado numa sala pequenina, encavalitado numa secretária, onde as paredes tinham o tom do tédio das repartições públicas, por causa de um meme que partilhei no Facebook, um meme, sim, essas pequenas porcarias digitais com que hoje se comunica a indignação, o sarcasmo, a vergonha alheia, o escárnio, o vómito que a política provoca. A senhora que me interpelou de modo educado e com uma enorme paciência, e a neutralidade treinada no rosto, perguntou-me se tinha consciência do que fizera, e eu não disse que não, porque tenho, tive, terei. Partilhei porque me apeteceu, partilhei porque me indigna que se indigne quem devassa, porque me exaspera esta moral de bordel onde tudo depende de quem faz e não do que se faz, partilhei porque era verdade, e isso parece ser o verdadeiro problema.
O meme, para os que não sabem ou fingem não saber, incluía uma cópia de um ofício oficial do Chega à Assembleia Legislativa da Madeira, com o nome de uma assessora e o ordenado que ia receber, uma coisa simples, factual, sem adjetivos, um documento como há tantos, mas que, vindo à luz do dia, incomodou, como incomoda sempre a realidade quando entra sem pedir licença na narrativa encenada do partido da indignação. O partido que se alimenta de denúncias mas morre quando é denunciado, o partido que berra pela transparência desde que a transparência seja dos outros, como os bêbedos que defendem a sobriedade dos vizinhos enquanto vomitam no passeio.
E não satisfeitos com a birra, há sempre uma birra nestes novos moralistas, como nas crianças que não aceitam perder, publicaram uma outra declaração de vencimento da própria senhora, a provar que, como professora até ganhava mais 40€ por mês, e que ia para ali perder dinheiro. A explicar-se, como se a explicação resolvesse o ridículo, como se a vitimização fosse suficiente para apagar o óbvio: que acusaram os outros de devassa e depois ofereceram devassa em modo panfleto. É sempre assim: a verdade só é pecado quando é dita pelos outros. A exposição é crime se não for controlada. A privacidade só importa quando é útil.
E no meio disto, há uma pergunta que se impõe, uma pergunta que grita no silêncio cúmplice da instituição: por que raio os assessores do Governo vêem os seus nomes, os seus currículos, os seus salários estampados no JORAM, com pompa e circunstância, e os vencimentos dos assessores parlamentares são tratados como se fossem planos secretos da CIA? Desde quando é que a Assembleia Legislativa da Madeira se tornou um bunker? Um confessionário? Um cofre?
Talvez porque aqui, como em quase tudo, há duas repúblicas a correr ao mesmo tempo: a oficial, com leis, regulamentos, princípios, e a outra, subterrânea, onde se decide o que se pode saber e o que não se pode, quem é exposto e quem se esconde, quem deve justificar-se e quem está acima da suspeita, como se a decência dependesse do cartão do partido ou do volume da indignação na última conferência de imprensa.
Não escrevi o meme. Mas assinava-o. Voltaria a partilhá-lo, com gosto, com fúria, com o cansaço de quem já não suporta a farsa, com a convicção de que a verdade, por mais feia, deve ser dita. Porque a transparência não pode ser boutique. Não pode ser à medida. Não pode ser para uns e não para outros. E se o salário de uma assessora é tratado como segredo de Estado, o Estado deixou de nos pertencer. Passou a ser o esconderijo de alguns, a trincheira dos que temem a luz.
E depois querem respeito. Querem ser levados a sério. Querem que os tratemos como se não soubéssemos o que são.
Maio 2025
Nuno Morna
❤️
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