Sem Cultura, Sem Liberdade: Estamos a Desistir de Pensar.

[Allan Bloom avisou-nos, e nós respondemos com indiferença e ignorância satisfeita]


Já não falo de livros há algum tempo, talvez porque o tempo deixou de pedir palavras longas e começou a preferir ruídos curtos, desses que se mastigam com o telemóvel numa mão e a pressa na outra. Mas ultimamente, nestes dias em que tudo parece afundar com um sorriso nos lábios, dei por mim a voltar ao que me formou. Aos livros, sim. E mais concretamente a Allan Bloom, que li há anos como quem ouve um homem velho a resmungar e que agora releio como quem escuta um profeta. Este tempo em que vivemos, feito de opiniões que não nasceram de ideias e de liberdades que não sabem o que são, empurrou-me de novo para a cultura geral, essa coisa desprezada que afinal é o que sobra quando tudo o resto se gasta. Bloom avisou-nos. E nós, como sempre, fizemos de conta que ele era apenas mais um pessimista. Mas talvez fosse apenas alguém que nos conhecia melhor do que nós próprios.


A cultura geral nunca foi, para quem pensa e acha pouco, uma excentricidade de quem tem tempo a mais ou de quem gosta de impressionar em jantares com gente importante, dessas ocasiões em que se cita Aristóteles entre um gole de vinho e um pedaço de queijo francês como quem cita o horóscopo. Não. A cultura geral foi sempre aquilo que, sem darmos conta, nos sustentou. O que nos impediu de cair para dentro da ignorância. O que nos deu palavras para nomear o mundo, memória para o compreender, e imaginação para o reformar. E perdê-la, ou pior, desprezá-la, é um acto de rendição. É entregar as armas antes sequer de ter começado a batalha. E nós, que gostamos de nos ver como modernos, como críticos, como livres, andamos a desarmar-nos há décadas, enquanto batemos palmas a cada nova moda pedagógica que confunde igualdade com apagamento, liberdade com falta de exigência, progresso com amnésia.


Allan Bloom, em "A Cultura Inculta" (edição antiga da extinta Europa-América), pôs o dedo na ferida com a frieza de quem não tem medo de ser mal interpretado. Mostrou-nos que, ao abandonarmos a cultura geral, estamos a abandonar a própria possibilidade de formar indivíduos livres. E o mais trágico é que o fazemos com a melhor das intenções. Dizemos que queremos formar cidadãos activos, conscientes, críticos. Mas ensinamos-lhes, quando muito, a indignar-se. Não a pensar. A identificar “estruturas” de opressão, mas não a compreender estruturas de pensamento. A denunciar o passado, mas não a lê-lo. Damos-lhes a ideia de que tudo é relativo, que todas as opiniões valem o mesmo, que a verdade é uma construção social, que os grandes livros são, no fundo, peças de um puzzle de dominação disfarçada. E depois espantamo-nos quando vemos que ninguém sabe escrever, que ninguém sabe argumentar, que ninguém é capaz de distinguir entre um argumento e um grito. A culpa não é deles. É nossa. Porque trocámos cultura por moralismo, exigência por consolo, conhecimento por slogans.


A universidade, esse espaço que deveria ser o laboratório da liberdade, tornou-se numa espécie de mercado de certificações. Circulamos por ela como quem faz compras: escolhemos disciplinas como quem escolhe detergente, queremos notas como quem quer pontos no cartão do Continente, queremos sair de lá com um diploma que diga que somos alguém. Mas não somos. Não ainda. Porque para sermos alguém precisamos de ter lido. De ter escutado os mortos. De ter lutado com ideias maiores do que nós. De ter sido incomodados, feridos, contrariados. O desconforto intelectual é o princípio da liberdade. Só quem foi desafiado pode dizer que escolheu. Os outros apenas repetem o que ouviram.


Sem cultura geral, não há autonomia possível. A liberdade, ao contrário do que gostamos de acreditar, não é um estado natural. Não é um impulso. É uma conquista. Um trabalho. Uma construção. E exige ferramentas. Exige que saibamos história para não repetirmos o que não compreendemos. Que saibamos filosofia para perceber o que está em causa quando discutimos justiça ou poder. Que saibamos literatura para reconhecer a densidade do humano, a ambiguidade das emoções, a riqueza do outro. Que saibamos o mundo, o que se passa e nos condiciona. A cultura geral não nos dá respostas prontas. Mas dá-nos perguntas melhores. Dá-nos contexto. Dá-nos profundidade. E sem profundidade, tudo é superficial, até a liberdade.


Sabemos isto, ainda que em surdina. Sabemos, por exemplo, que se fôssemos chamados a escrever sobre a liberdade, muitos de nós repetiríamos frases feitas. Citações de redes sociais. Palavras bonitas sem nervo. Porque deixámos de ter estofo. Deixámos de ter vocabulário, de ter densidade interior. E porque perdemos a cultura geral, perdemos também a capacidade de resistir. De dizer não. De argumentar contra a maioria. De reconhecer quando a liberdade está a ser substituída por qualquer coisa que a imita, como se a embalagem fosse o mesmo que o conteúdo.


Bloom alerta-nos para isso com uma lucidez implacável. E fá-lo sem apelos sentimentais. Não diz que devemos salvar a cultura porque é bonita, ou porque é nossa. Diz que devemos salvá-la porque sem ela não há política que se sustente. Não há democracia que funcione. Não há indivíduo que pense. A cultura geral é a matéria-prima da cidadania. Sem ela, somos apenas peças num jogo que não compreendemos. Consumidores de frases. Repetidores de indignações alheias.


E não se trata, como alguns pensam, de elitismo. Ou melhor... trata-se, e ainda bem. Porque a democracia precisa de elites. Não elites de sangue, nem de dinheiro. Elites de pensamento. Gente que leu, que pensou, que estudou. Gente que sabe que a liberdade custa. Que não se confunde com fazer o que apetece. Que exige responsabilidade, memória, coragem. E que só a cultura, a verdadeira, a difícil, a que não se aprende por contaminação, nos pode dar essa coragem.


Estamos, pois, numa encruzilhada. Ou regressamos à cultura geral, não como passatempo, mas como urgência, ou perdemos o pouco que ainda temos de liberdade efectiva. Ou exigimos mais das escolas, das universidades, de nós mesmos, ou continuaremos a produzir cidadãos com opinião sobre tudo, mas compreensão de quase nada. Ou voltamos a ensinar os clássicos, não por nostalgia, mas porque ainda dizem mais do que qualquer post, ou deixamos que o vazio se instale. E quando o vazio se instala, a liberdade é a primeira a sair pela porta.


A cultura geral é a nossa única salvação. Se é que ainda vamos a tempo.


Maio 2025

Nuno Morna 





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