Demagogia, ou a arte de nos servirem sempre o mesmo prato requentado.

Aqui há uns dias, numa daquelas tardes mansas de sábado, em que o tempo escorre devagar e a televisão serve de companhia mais por hábito do que por interesse. Andava eu a fazer zapping, nesse gesto mecânico de quem procura qualquer coisa que o distraia sem pedir esforço, quando encalhei no canal V+, que passava concertos do FNAC LIVE. Saudosista que sou, e cada vez mais, confesso, fiquei por ali, preso ao ecrã, ao som de Lena D’Água. Já perto do final, entre o brilho discreto da banda e a elegância crua da voz, surgiu “Demagogia”, canção de outros tempos que, como certas dores, não passa. Cantou-a com aquela firmeza doce de quem sabe que ainda dói, e encantou.

De vez em quando passa uma canção de 1982 que parece escrita ontem, ou amanhã, ou depois de amanhã, e talvez isso diga tudo sobre este país com fungos na memória, onde os discursos mudam de cor como os anúncios e os políticos aparecem nas ruas como formigas em tempo de pão doce. Ouve-se a letra, quase um relatório clínico de cardiologia institucional, e percebe-se que pouco ou nada mudou, excepto os penteados, os logótipos e os nomes dos culpados.

“Dão nas vistas em qualquer lugar

Jogando com as palavras como ninguém

Sabem como hão-de contornar

As mais directas perguntas”

Conheci muitos assim, ainda com cheiro a naftalina nos fatos e um leve odor a brilhantina na língua. Aprenderam a evitar perguntas como quem aprende a desviar olhares na rua: com prática e desprezo. Falam com a agilidade de um peixe de feira e o cuidado de um ladrão que entra pela janela, e fazem-no com a convicção vazia de quem acredita apenas no eco da própria voz. A política, nesse tempo e neste, é mais jogo de salão do que ciência de governo. E o salão está cheio de espelhos partidos.

“Aproveitam todo o espaço

Que lhes oferecem na rádio e nos jornais

E falam com desembaraço

Como se fossem formados em falar demais”

Não é um curso, é um instinto. A faculdade onde se formaram foi a das oportunidades. Não estudaram Platão, mas sabem de cor as grelhas dos telejornais. Não lêem, mas dominam o tom da indignação calibrada. O país tornou-se um estúdio. Os Parlamentos, uma sala de maquilhagem. Cada frase ensaiada ao espelho antes de ser dita, cada silêncio meticulosamente posto onde dói menos. Há nisto tudo uma espécie de liturgia triste, uma missa laica em que as promessas são hóstias que nunca alimentam.

“Demagogia feita à maneira

É como queijo numa ratoeira”

E nós, os ratos, habituados ao sabor do veneno, mordemos sempre o mesmo queijo com a fé dos que já não acreditam em milagres, mas fingem acreditar no padre. Há um certo prazer em cair na armadilha, como se a queda nos lembrasse que ainda somos vivos, ainda que magoados. O problema, claro, é que a ratoeira já não é sequer necessária: basta deixar o queijo à vista. Nós vamos.

“P’ra levar a água ao seu moinho

Têm nas mãos uma lata descomunal

Prometem muito pão e vinho

Quando abre a caça eleitoral”

Vi-os a prometer pão com a boca cheia de croissants. A falar de vinho enquanto brindavam com champanhe importado. O eleitorado, que somos todos nós, com os joelhos esfolados de tanto cair nos mesmos buracos, vai atrás porque o verbo prometer tem o som doce de uma avó que ainda acredita em fadas. E a caça eleitoral é isso: um teatro onde os caçadores disfarçam-se de veados, e os tiros nunca chegam aos verdadeiros alvos.

“Desde que se vêem no poleiro

São atacados de amnésia total

Desde o último até ao primeiro

Vão-se curar em banquetes, numa social”

A amnésia, esse dom português. A arte de esquecer enquanto se mastiga. Entram pobres em memória e saem ricos em digestões. Os banquetes são a cura. Cura para as promessas, para os compromissos, para os programas eleitorais deixados a amarelecer na gaveta. As “sociais” onde se exibem são o confessionário laico onde se redimem sem confessar. E nós assistimos, sempre, como quem lê o obituário à espera de se ver lá escrito.

E talvez o mais trágico, ou o mais cómico, seja isso: esta canção, feita num país que ainda se habituava à ideia de liberdade, continua a ser o retrato fiel de um país que já se habituou demasiado a não saber o que fazer com ela. E é por isso que a ouvimos e rimos. Não porque seja divertida. Mas porque já nem conseguimos chorar.

Junho 2025

Nuno Morna



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