Horários do Funchal: Autocarros Vazios, Cofres Rotos.

[Como os Horários do Funchal se tornaram o retrato perfeito da falência do serviço público e da mentira da gratuitidade]

A história dos Horários do Funchal, qual tragicomédia de dinheiros públicos mal geridos, autocarros que circulam como sonâmbulos e utentes que se evaporam como fumo de cigarro antigo em paragens onde já ninguém espera nada, é um daqueles episódios que só não espantam porque a Madeira, há décadas, se habituou a viver no espanto. Um espanto domesticado, resignado, como quem assiste a uma telenovela pela milésima vez e ainda assim torce por um final diferente. E não é. Nunca é.

Um milhão de euros de prejuízo num trimestre. Um milhão. Como se um milhão fosse pouca coisa. Como se um milhão fosse apenas uma questão contabilística, uma pequena correcção nos livros da empresa, uma vírgula fora do sítio, um azar. Um milhão de euros enterrado em três meses sem protesto, sem manchete, sem vergonha. E digo enterrado porque ninguém sabe o que foi feito dele. Não melhoraram os autocarros. Não aumentaram os passageiros. Não baixou o preço porque já nem preço há. Desapareceu, o dinheiro, como desaparecem os projectos nesta terra: sob a forma de despesa justificada, adjudicada, assinada com um sorriso. Um milhão. Repetido quatro vezes dá quatro milhões num ano. Quatro milhões de euros para uma empresa que transporta cada vez menos pessoas e funciona, na prática, como um emprego social motorizado.

E os passageiros, coitados, novecentos e cinquenta mil que deixaram de existir, que se evaporaram num trimestre como se fossem números inventados, ou almas penadas que se cansaram de esperar por um transporte que nunca chega a horas. Quase um milhão de seres humanos a menos, num arquipélago que já tem poucos. Onde foram? Para onde fugiram? O carro, provavelmente. A mota, quem sabe. Ou então desistiram mesmo. Caminham. Inventam rotinas novas. Evitam os autocarros como se fossem armadilhas. Porque os horários não servem, as paragens são labirínticas, os percursos absurdos, as esperas longas, a informação inexistente. E o pior: a sensação constante de que ninguém quer saber.

E de repente, entre os números, salta o mais grotesco: apenas 18% dos passes são pagos. Dezoito por cento. O resto é oferta, cortesia, benevolência, esmola institucionalizada. Um sistema onde pagar é a excepção e andar de borla a regra. E o mais absurdo, ou talvez o mais revelador, é que nem assim há gente. Nem com o transporte gratuito as pessoas o usam. Porque a gratuitidade, quando aplicada a um serviço disfuncional, é apenas um disfarce: um papel de embrulho em volta de uma falência. Falência do modelo, falência da gestão, falência da ideia de que tudo o que é público pode ser ineficaz porque “serve o bem comum”.

E depois, claro, os números orgulhosos da empresa: cinquenta e oito carreiras, cento e cinquenta e oito autocarros. Como se fossem conquistas. Como se o tamanho da frota fosse um argumento. Como se o número de linhas justificasse a existência. Como se a quantidade, por si, redimisse a ausência de qualidade. Mas os autocarros andam, quase sempre, sem ninguém. Passam nos bairros vazios, apitam nos cruzamentos, descem à avenida do Mar com dois passageiros e um motorista que olha para o horizonte como quem conduz o próprio desespero. Há lugares onde não chegam. Outros onde chegam tarde. Há carreiras que passam de quinze em quinze minutos e outras que parecem lendas urbanas. Não há lógica. Não há critério. Há só este grande faz-de-conta.

E isto não é acaso. Não é acidente. É método. É a consequência directa da gestão política das empresas públicas como se fossem departamentos de propaganda. Como se o transporte não servisse para transportar, mas para dar emprego. Para distribuir avenças. Para montar estruturas de controlo social e eleitoral. Os Horários do Funchal não são um serviço público, são um bastião. Um lugar onde o poder se entrincheira, onde se colocam os leais, onde se agradecem favores e se trocam promessas por lugares. A mobilidade é o pretexto. O objectivo é outro.

E no fim, o que sobra? O cidadão, claro. Que paga os impostos. Que financia os passes gratuitos com o seu IRS. Que espera no calor ou na chuva por um autocarro que não vem. Que ouve as conferências sobre “mobilidade verde”, “transição justa”, “acessibilidade para todos” enquanto percorre a cidade com os sapatos gastos. O cidadão que deixou de acreditar. Que desistiu de reclamar. Que prefere pagar gasolina, comprar um carro velho, aceitar os engarrafamentos diários do que confiar num sistema que o trata como utente apenas em período eleitoral.

E sobra a ilha. A Madeira, com as suas estradas sinuosas, as encostas ocupadas por bairros e betão, o centro urbano entupido, a periferia abandonada. Uma ilha pequena com problemas de cidade grande e soluções de vila. Onde se constrói um sistema de transportes a fingir que é Copenhaga, mas a funcionar como um feudo do caciquismo local. Onde o progresso é medido em quantidade em vez de qualidade. E onde a palavra “gratuito” já não significa justiça, mas apenas o contrário de valor.

Mas ainda assim, por entre os destroços, há soluções, poucas, difíceis, impopulares, mas há. Primeiro, romper com a ilusão da gratuitidade total: criar uma bilhética simbólica, acessível, mas real, que obrigue ao acto de escolha e resgate o valor do serviço. Depois, reestruturar radicalmente a rede: eliminar carreiras redundantes, redesenhar os percursos com base em dados reais de mobilidade e não em mapas imaginados por engenheiros fechados em gabinetes, redesenhar o sistema das paragens, integrar o serviço com modos alternativos de transporte, desde bicicletas partilhadas a trotinetas e pequenos veículos eléctricos. Terceiro, abrir o sistema à concorrência regulada: permitir que operadores privados, com contratos bem definidos, metas objectivas e avaliação independente, possam concorrer por zonas ou horários, introduzindo o estímulo básico que tem faltado: o de prestar contas. Finalmente, transformar a empresa num organismo transparente, com relatórios públicos, direcção nomeada por mérito e não por cartilha partidária, e uma nova cultura de serviço que veja o passageiro como cliente e não como estatística. Tudo o resto é continuar a pintar os autocarros de cores novas, enquanto o motor apodrece.

Esta é a verdade, crua e triste. O sistema não serve. A empresa está morta. E todos fingem que não sabem, porque dá jeito. Até que o dinheiro acabe. Ou até que alguém se canse de pagar. E nesse dia, quando tudo parar, vão perguntar porquê. E alguém, com ar muito sério, há-de responder: a culpa é da falta de investimento. Como sempre.

Junho 2025

Nuno Morna

P.S.: em meia dúzia de anos a Horários do Funchal gastou em bilhética (software, máquinas de leitura, bilhetes) quase 8 milhões de euros, repito: 8 milhões de euros. Um verdadeiro absurdo que deveria ser motivo de inquérito para se conseguir perceber como se gasta tanto dinheiro tão mal gasto.






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