O Orçamento da Autonomia Socialista da Grande Laranja.

Parte I

A Burocracia como Religião, o Dinheiro como Droga e a Autonomia como Piada


Quando se lê o “Orçamento da Região Autónoma da Madeira para 2025”, esse monumento ao fingimento, esse tratado de adormecimento colectivo, esse catecismo litúrgico da tecnocracia decadente, percebe-se, quase de imediato, que já não se trata de um exercício financeiro, mas de um rito de sobrevivência política. Um documento que, à semelhança das velhas homilias do regime do Estado Novo, se destina a convencer o povo de que está tudo no melhor dos mundos, que se está a avançar, que se está a progredir, que a Madeira é um milagre e que a culpa, claro está, é sempre de Lisboa quando não há mais papel higiénico nos dispensadores dos Hospitais e Centros de Saúde.

Este Orçamento da Autonomia Socialista da Grande Laranja é, de facto, uma ficção contabilística que mistura a pior herança do socialismo com o caciquismo rural de um partido que se apropriou da ideia de autonomia como um feudo hereditário. A Madeira, este arquipélago cada vez mais penhorado, esta colónia de si própria, esta caricatura de liberdade insular, entrega ao mundo um orçamento que não liberta, não transforma, não reforma. Gasta. Gasta e distribui como um velho dono de quinta que atira moedas aos jornaleiros para se manter no poder mais um ano, mais um ciclo, mais uma derrapagem.

Comecemos pela filosofia subterrânea deste documento, porque ela é invisível mas omnipresente. A filosofia que o orienta, se é que se pode chamar filosofia a esta colcha de retalhos fiscais e rubricas alimentadas a subsídios, é a do medo. Medo de reformar, medo de cortar, medo de enfrentar os vícios da Madeira velha, medo de perder os votos que saem com o reboque das Juntas de Freguesia. Medo de governar com coragem. O que temos, portanto, é um orçamento governado por um instinto pavloviano: o de manter todos os cães alimentados com restos da cozinha pública. O funcionário, o dependente, o promotor de eventos, o presidente de associação cultural sem cultura, e da Casa do Povo sem povo, todos têm direito ao seu prato. Autonomia, aqui, é apenas o nome cerimonial do comedouro.

E que comedouro monumental este. O documento é uma ode à despesa corrente, esse fetiche de todas as administrações que querem parecer modernas mas não suportam a ideia de um Estado que se limite a criar condições e depois se retire. Nada disso. O Orçamento da Autonomia Socialista da Grande Laranja é, como o nome indica, socialista na sua alma e clientelar na sua mecânica: o Estado Regional é simultaneamente empregador, investidor, árbitro, amigo e padrinho. Empurra dinheiro para tudo o que se mexe, desde que se mexa com a bandeira laranja ao ombro e um papel timbrado a autorizar.

A “valorização dos trabalhadores da Administração Pública”, por exemplo, é uma maravilha de lirismo soviético. Reduzem-se os pontos necessários para progredir na carreira, aumenta-se a despesa com pessoal, e repete-se o mantra da “justiça social”. Mas justiça para quem? Para os que já estão dentro. Os que estão fora, os que produzem, os que trabalham por conta própria, os que tentam criar algo novo, esses não aparecem no documento. São fantasmas. Não geram votos. O liberalismo, aliás, é uma ausência conspícua: não há uma linha, uma frase, uma palavra que sugira que os cidadãos devem ser responsáveis pelo seu destino. Tudo depende do Estado. Tudo vem da Secretaria. Tudo passa pela assinatura de alguém com cartão partidário.

A fiscalidade, essa outra ficção, é tratada com o mesmo paternalismo bolorento. Reduções de IRS que parecem generosas mas que, lidas com atenção, se revelam cosméticas. Um diferencial de 30% que já existia, agora estendido, como se a Madeira estivesse a oferecer uma liberdade fiscal ao nível das Ilhas Faroé ou da Estónia. Mas a verdade é outra: o sistema continua complexo, progressivo até à caricatura, e profundamente hostil ao investimento. E no IRC, então, é o espanto: fala-se em “apoio às startups” enquanto se mantém o mesmo modelo fiscal opaco e instável, com taxas que variam conforme o humor do legislador e uma derrama regional que é tudo menos competitiva. Isto não é autonomia fiscal. É uma fantasia mal disfarçada de modernidade. Um disfarce de carnaval fiscal que tenta esconder a nudez das ideias.

Depois há a questão da dívida. A grande dívida. A dívida como vício. A dívida como respiração. A dívida como expiação. Este Orçamento, que se quer “prudente”, autoriza o Governo Regional a contrair empréstimos até ao limite máximo que a lei permita, em mercados internos e externos, com prazos que vão até 50 anos. Cinquenta anos. Meia vida de dívida futura para pagar a inércia do presente. E ninguém se escandaliza. Porque esta gente já não se escandaliza com nada: viver com défice é como viver com dores nas costas. Habitual. Irritante. Irremediável. O que é preciso é não falar muito disso. Que venha o dinheiro, que se pague o essencial, que se maquilhem os números e que o próximo resolva. A autonomia, nesta versão socialista e tropical, é a liberdade de continuar a pedir dinheiro ao Estado central enquanto se grita “Lisboa está a falhar connosco”.

E no meio disto tudo, a cultura, esse capricho de elite, esse ornamento institucional, é tratada como um ministério do resto. Sem visão, sem estratégia, sem alma. Só se investe no que faz barulho, luzes e projecção mediática: festivais com nomes em inglês, eventos programados por empresas amigas, subsídios para tudo o que tenha uma associação, mesmo que ninguém saiba o que essa associação faz. Não se cria público, não se educa, não se forma. Faz-se cultura de espectáculo e espectáculo para manter as máquinas montadas, com luzes de néon e facturas a justificar. Confunde-se cultura com entretenimento


Parte II

O Teatro do Investimento, o Subsídio como Evangelho e o Sagrado Imobilismo das Transferências


Se a primeira parte deste auto de fé orçamental nos revelou o culto da burocracia e da dívida como essência de um regime que se diz autonómico mas se comporta como uma repartição do Terreiro do Paço, esta segunda mergulha numa outra liturgia: a do investimento público como pretexto, o apoio social como mordaça, e as transferências como a eucaristia laica com que se apazigua o rebanho.

Comecemos pelo chamado PIDDAR, esse acrónimo pomposo que cheira a ficha técnica de congresso europeu de tecnocratas. O Programa de Investimentos e Despesas de Desenvolvimento da Administração Regional é, no fundo, uma sebenta de intenções: páginas e páginas de verbas atribuídas a projectos de urbanismo redundante, pavimentações duplicadas, rotundas com esculturas orçamentadas a três vezes o custo de produção e escolas que se abrem para fechar meses depois por “ajustamentos demográficos”. Nenhum destes investimentos é sujeito a análise de custo-benefício séria. Nada se sabe sobre a taxa de retorno social, a sustentabilidade, ou sequer a necessidade efectiva. O que interessa, como sempre, é o símbolo. A placa. O corte de fita. O drone a filmar.

A isto chama-se “desenvolvimento” no léxico da Grande Laranja. Desenvolver é gastar. Desenvolver é alcatroar. Desenvolver é assinar contratos com empresas que são sempre as mesmas, com adendas, revisões, ajustes directos e mais um memorando de entendimento para reforço da parceria que há vinte anos que se vai reforçando sem se perceber onde começou. E por falar em empresas, repare-se que o orçamento prevê, com desenvoltura quase cómica, “operações activas do Tesouro” até 250 milhões de euros. Um quarto de milhar de milhão. Como quem diz: o cofre está aberto, venham as entidades bem relacionadas, a tesouraria serve à discrição.

E depois temos o apoio social, que é, no fundo, o narcótico preferido do regime. A forma mais segura de manter a paz, a dependência, a obediência. Subsídios para habitação, para a juventude, para os carenciados, para os clubes, para as bandas filarmónicas, para as festas do vinho e para os desfiles das flores. Tudo tem direito ao seu envelope, à sua avença, à sua linha de financiamento especial. Há subsídios que se dão antes de haver contratos. Outros que se dão mesmo que já tenham sido gastos. E outros ainda que servem, sem pudor, para “consolidação do passivo”, expressão delicada para dizer que se está a pagar dívidas antigas com dinheiro novo sem que se saiba quem contraiu, porquê, ou com que resultados.

Neste contexto, a famosa Autonomia Socialista revela-se em toda a sua nudez: não é a autonomia de quem se liberta, mas de quem controla. De quem distribui. De quem decide quem pode viver do Estado e quem deve continuar fora do círculo, a mendigar papéis e audiências. A Madeira tornou-se um sistema feudal de segunda ordem, com os baronetes das autarquias e das instituições públicas a gerir feudos de verbas e influências como se fossem senhorios do século XIX. E todos gritam “autonomia”, claro. Até porque autonomia, neste léxico, quer dizer o direito de gastar dinheiro dos outros com assinatura própria.

E as transferências, ah, as transferências. Aqui se vê a perversidade do mecanismo: o Orçamento da Autonomia Socialista da Grande Laranja é, no seu âmago, um sofisticado sistema de redistribuição de verbas sem qualquer lógica. Os municípios recebem dinheiro que não geraram, as freguesias são financiadas ao metro quadrado e ao amigo, e as associações vivem de contratos-programa que se prorrogam automaticamente, mesmo que ninguém saiba o que fizeram com o anterior. Nada disto é avaliado. Nada disto é medido. E quando se fala em fiscalização, fala-se num parágrafo de rodapé onde se refere que a Inspecção Regional de Finanças “pode” pedir documentação. Pode. Se quiser. Se tiver tempo. Se sobrar alguém disponível.

Este é o mecanismo central da governação insular: um Estado distribuído em muitas valências, cada uma com o seu micro-orçamento, os seus cargos de confiança, os seus pequenos favores e os seus circuitos de dependência recíproca. O objectivo não é servir. É manter. Manter o que está. Manter os lugares. Manter o voto. A função pública tornou-se refém da fidelidade. A economia, refém da subvenção. E a sociedade civil, essa, refém do silêncio.

Não há aqui mercado, nem iniciativa privada florescente, nem liberdade de escolha. Há um simulacro de desenvolvimento onde todos fingem que há dinamismo, enquanto se roda a mesma verba de ano para ano, com um nome diferente e uma taxa de execução que ninguém verifica. E quando se pergunta por que razão a Madeira, depois de décadas de orçamentos assim, continua a liderar os rankings de pobreza relativa e exclusão social, a resposta é sempre a mesma: “a culpa é do continente”.


Parte III

A Mentira da Contenção, o Farsante da Transparência e a Besta Triunfante do Compadrio Orçamental


Entramos agora naquela parte do documento que os tecnocratas chamam, com ar de severidade, “execução orçamental e disciplina da despesa”, como se a simples invocação da palavra “disciplina” fosse capaz de disfarçar décadas de laxismo, negligência, compadrio e puro desgoverno. Há aqui uma coreografia que já conhecemos: faz-se um número de magia com a “contenção orçamental” enquanto se aumenta a dívida, congela-se despesa de fachada e liberta-se na prática, escreve-se “controlo” para enganar os tolos, e nos bastidores continuam as contratações, os almoços pagos com verbas do Plano e os ajustes directos com envelope castanho no fundo da gaveta.

O artigo 22, com o seu tom eclesiástico, proclama a necessidade de “contenção rigorosa das despesas públicas” e “eficiência na aplicação dos recursos”. Isto, claro, ao mesmo tempo que o orçamento aprova aumentos remuneratórios automáticos na função pública, progressões facilitadas, subsídios discricionários e mecanismos de financiamento que não exigem retorno nem responsabilidade. É como se um alcoólico dissesse ao espelho, copo na mão, que vai reduzir o consumo.

Depois, o documento entrega ao Governo Regional um poder quase absoluto para alterar o orçamento durante o ano, como se este fosse apenas uma proposta de intenções e não um compromisso democrático com o contribuinte. As alterações orçamentais permitidas (artigo 23) são de um laxismo tal que transformam a Assembleia Legislativa num órgão decorativo, uma espécie de parlamento de figurantes onde se debatem números que já nasceram mortos. O Conselho do Governo, numa generosidade orçamentária digna dos czares russos, pode movimentar verbas, criar dotações, transferir fundos entre programas como quem troca peixes no mercado. E se houver uma intempérie, um conflito internacional, ou simplesmente “urgência imperiosa”, o que, como se sabe, pode incluir a entrega de um projecto para um festival de grupos folclóricos, então liberta-se o que for preciso. Porque aqui a excepção é a regra.

E repare-se na cereja em cima do bolo orçamental: as cativações (artigo 24), esse instrumento que, num governo sério, serviria para travar despesas inúteis, aqui são um jogo de sombras. Congelam-se percentagens de verbas (25%, 35%, 50%) com um ar muito austero, para depois se descongelarem automaticamente sempre que “a candidatura for aprovada”, ou se o Secretário das Finanças estiver bem disposto. O descongelamento, diz-se, pode ocorrer “em casos excepcionais e devidamente fundamentados”. Ora, na Madeira, tudo é excepcional. Um jantar da Confraria do Vinho da Madeira? Excepcional. Uma viagem de estudo de 12 professores a Estrasburgo? Excepcional. Um protocolo para promover “a dança contemporânea como instrumento de coesão identitária insular”? Excepcional. O resultado? O orçamento real não é o que se aprova. É o que se decide, na sombra, ao longo do ano.

E chegamos, enfim, à besta triunfante do compadrio institucionalizado, o verdadeiro coração negro do Orçamento da Autonomia Socialista da Grande Laranja: a política de subsídios e apoios. Os artigos 36 a 41 descrevem um sistema de distribuição de dinheiros públicos tão generoso, tão vasto, tão abrangente, que não é possível saber se se está a ler um orçamento regional ou o manual de funcionamento de um Estado do Golfo Pérsico. Há apoios para tudo: habitação, cultura, juventude, comunidades emigrantes, agricultores, operadores de rádio, pescadores, imigrantes, festivais religiosos, viticultores, bordadeiras, eventos de “animação turística”, e por aí fora. Tudo é subsidiável. Tudo é justificável. Tudo tem um contrato-programa. Tudo pode ser prorrogado.

O que não há, e é precisamente isso que define a doença, é uma cultura de responsabilidade. Os subsídios não são avaliados. Os objectivos são vagos. As prestações de contas, quando existem, são formais. Os relatórios de execução, se forem lidos, são ignorados. A Inspecção de Finanças, impotente, é obrigada a correr atrás de papéis como um cão com problemas de coluna. E se algum beneficiário incumprir, o que acontece? Muito pouco. A retenção de verbas futuras, quando aplicada, já é tarde demais: o dinheiro voou, a factura está paga, o boletim informativo publicado com a fotografia do Secretário.

Este modelo, esta orgia de pequenos favores, grandes contratos e verbas por medida, não serve o bem comum. Serve os mesmos. Os do costume. Os que vivem do sistema. Os que se adaptaram à nomenclatura insular e descobriram que, na Madeira, quem se aproxima do poder nunca mais volta a pagar um café do próprio bolso.


Parte IV

A Farsa da Habitação, a Indecência da Dívida e o Bordado Partidário da Função Pública


Agora que estamos já bem dentro do matagal legislativo e da charneca de vícios perpétuos onde o regime madeirense se compraz em rastejar, toca agora a dissecar três dos grandes pilares do embuste institucionalizado: a política de habitação enquanto biombo eleitoral, o delírio do endividamento legalizado como metadona de governação e a destruição completa da ideia de mérito no funcionalismo público, esse bordado partidário bordado a ponto de cruz laranja.

Comecemos com a habitação, esse chavão conveniente que, como a palavra “autonomia”, perdeu o significado e passou a designar tudo o que o regime queira que signifique: casinhas para os amigos, empreendimentos que nunca se concluem, bairros sociais que são guetos administrativos, um modus operandi de captação de votos com tijolo, cimento e papel timbrado do IHM, Investimentos Habitacionais da Madeira, EPERAM. O artigo 32 é de uma clareza brutal: o Governo cede imóveis ao IHM gratuitamente, sim, gratuitamente, e este, por sua vez, pode “cedê-los” a cooperativas habitacionais mediante pagamento. Isto é: o Estado oferece, e a IHM transforma-se num senhorio burocrático autorizado a vender. Quem fiscaliza? Ninguém. Quem define as condições? A própria. Quem beneficia? As mesmas cooperativas que, por mero acaso, costumam estar recheadas de ex-candidatos, filhos de dirigentes, presidentes de junta e dirigentes associativos com bom currículo de fidelidade. Aqui, a habitação não é um direito. É um favor.

Nada se diz, claro, sobre liberdade de escolha, nem se pondera qualquer modelo de apoio directo ao arrendamento (como vales ou cheques-habitação), nem se fala em facilitar o mercado, cortar licenças, permitir construção em terrenos subaproveitados. A política de habitação da Autonomia Socialista da Grande Laranja é paternalista, estatista, antiquada. Finge combater a pobreza habitacional ao mesmo tempo que cria uma nova classe de dependência habitacional, os “arrendatários do regime”. Gente que deve a sua casa ao Partido e, portanto, sabe em quem votar.

Passemos agora à dívida, essa máquina de perpetuação do desequilíbrio, esse vício institucionalizado que já não é tratado como doença mas como sinal de maturidade orçamental. No artigo 7.º e seguintes, o Governo Regional outorga a si mesmo a liberdade de aumentar o endividamento líquido regional até ao limite autorizado pelo Orçamento do Estado. Repare-se no eufemismo: “endividamento líquido”, como se houvesse uma espécie de dívida que não é dívida, uma água pura e translúcida que, apesar de ser lama, se possa beber à colher. A Madeira, hoje, endivida-se não para crescer, mas para sobreviver. Endivida-se para pagar salários, financiar transferências correntes, tapar buracos das empresas públicas e empurrar para o futuro as dívidas do passado.

Mais ainda: o Governo autoriza-se a contrair empréstimos com prazo até 50 anos. Cinquenta. Meia vida. Meio século de encargos para pagar tudo e um queijo. E tudo isto com a benção da Assembleia Legislativa, onde a oposição é ignorada, onde o debate é encenado e onde os deputados da maioria se levantam como autómatos para aprovar, olhos semicerrados e consciência lavada com sabão de lealdade. A dívida regional é o novo ouro. Com ela se constrói, se compra silêncio, se sustenta a ficção do investimento público e se mantém a classe política num transe permanente de irresponsabilidade. Como disse certa vez um ministro do défice em Lisboa, “o importante não é pagar, é parecer que se paga”.

E por fim, o glorioso funcionalismo público regional, esse bordado rendilhado de promoções automáticas, progressões subjectivas e concursos que são testes de fidelidade interna. O artigo 47, com ares de justiça social, introduz uma medida que à primeira vista parece sensata: quem tiver 6 pontos acumulados nas avaliações de desempenho muda automaticamente de posição remuneratória. Muito bem. Mas atenção: também se reduzem os pontos necessários, se acomodam situações irregulares e se aplicam as regras mesmo a quem já progrediu. Ou seja: é a festa. Um carnaval de aumentos salariais onde não interessa se há resultados, se há mérito, se o serviço público melhora. Interessa é que os fiéis tenham a sua recompensa.

E como se isto não bastasse, a regra aplica-se também às empresas públicas. Àquelas que acumulam prejuízos, que vivem de transferências, que pagam subsídios aos administradores com salários que envergonhariam o sector privado, mas que, atenção, continuam fora do escrutínio real. Aqui o mérito não conta. Conta o alinhamento. Conta o silêncio cúmplice. Conta o cartão certo. E este sistema, replicado ano após ano, vai gerando uma nova aristocracia: os nomeados, os nomeáveis, os técnicos superiores com secretária e motorista que nunca geriram um cêntimo que não fosse público.

E é isto o que temos: uma administração que não serve, mas que se serve. Um governo que diz querer contenção mas que despeja dinheiro. Um orçamento que se diz prudente mas é viciado. Uma política de habitação que diz proteger mas aprisiona. Uma máquina pública que se diz profissional mas é clientelar. Tudo isto com o selo da “autonomia” e a benção do “desenvolvimento”.


Parte V

A Juventude como Mito, a Inovação como Palavra Vazia e a Cultura como Feudo de Família


E agora, finalmente, mergulhemos naquele pântano que já não tem sequer a decência de fingir que está em obras: a política para a juventude, para a inovação e para a cultura. A tríade que, num orçamento de um governo verdadeiramente desenvolvimentista, deveria ser o motor de um novo ciclo de crescimento, aparece aqui como nota de rodapé, anexo ornamental, ou pior ainda: como instrumento de simulação. Uma Madeira do século XXI gerida por um orçamento do século XIX com a maquilhagem digital do século XX. É isto que temos.

A juventude, essa entidade mítica tantas vezes invocada por quem a ignora, é reduzida, neste documento, a uma função subsidiária: beneficiária de programas. Não há qualquer menção séria a planos de emancipação económica, nem incentivos estruturados para a criação de empresas por jovens, nem muito menos uma reforma profunda do sistema de ensino profissional para adaptá-lo à economia digital. A juventude, neste orçamento, é um target de apoios à habitação, vales de formação e vagas em projectos que quase sempre redundam em estágios remunerados com valores risíveis e inserção nula. Ou seja: criam-se ocupações, não se cria valor.

A Madeira não tem, e este orçamento não propõe, um modelo de mobilidade ascendente. O que temos é um regime que prefere jovens domesticados a jovens independentes. Que oferece subsídios de renda mas não corta nos entraves à construção. Que organiza conferências sobre empreendedorismo mas mantém um labirinto fiscal e burocrático que sufoca qualquer iniciativa fora do circuito da benesse. Que repete “start-up” como quem reza um terço, sem perceber o que é equity, risco, pivot ou liquidez. Aqui, inovação é um texto bem impresso, um seminário com coffee-break e uma incubadora de empresas onde ninguém incuba nada.

No capítulo da inovação, o vazio é ensurdecedor. O que se diz, e pouco se diz, revela um completo desfasamento entre a Madeira real e a Madeira possível. Fala-se de “apoios”, nunca de incentivos fiscais robustos, liberdade regulatória, simplificação profunda do licenciamento. Não se encontra uma única proposta de zona franca tecnológica, de sandbox legal, de sistema de atração de nómadas digitais ou programadores estrangeiros com impostos reduzidos e residência facilitada. Nada. Nem uma linha sobre interoperabilidade digital entre serviços. Nem uma ideia para transformar a Madeira num verdadeiro hub atlântico de inovação.

A ilha, com as suas condições únicas de escala, insularidade e ligação à diáspora, poderia ser um laboratório de experimentação fiscal e digital. Uma estufa política para testar novos modelos de governance e participação cívica. Mas para isso seria necessário um governo ambicioso, corajoso. O que temos é um governo que repete a palavra “inovação” como se fosse uma marca de champô: sem conteúdo, sem plano, sem visão.

E então chegamos à cultura. O que há para dizer senão que é aqui que o regime mostra o seu rosto mais feudal? A cultura, na Madeira de Albuquerque, não é um espaço de liberdade nem um motor de questionamento. É uma galeria de ex-votos onde se expõem projectos aprovados por afinidade, financiados por lealdade, celebrados por cortesia. Os apoios culturais são, em grande medida, mecanismos de domesticação estética. Promove-se o folclore institucionalizado, o fado simpático, a tradição adestrada. Mas censura-se, ignora-se ou marginaliza-se qualquer voz que ouse sair do consenso plástico da Madeira postal ilustrado.

O orçamento prevê verbas para festivais com nomes em inglês, claro, para que pareça internacional. Mas não há nada que aproxime a cultura das escolas. Nada sobre apoio à criação contemporânea, nada sobre incentivo à edição, à literatura, à dramaturgia, à crítica. Os contratos-programa culturais são a mecânica de sempre: as mesmas estruturas, os mesmos grupos, os mesmos pareceres positivos. A cultura, neste regime, é um prolongamento da secretaria. Uma extensão da máquina. O artista é funcionário, o funcionário é curador, o curador é familiar, e o familiar é votante. Assim se faz cultura na Autonomia Socialista da Grande Laranja: com carimbos, abraços e muita pomba branca de conveniência.

A cereja em cima deste triste bolo é a total ausência de princípios culturais. Não há um sistema de mecenato a sério, nem incentivos a investimento privado na cultura, nem modelos de gestão partilhada. Tudo é público. Tudo é Estado. Tudo passa por quem manda. E quem manda, por mais voltas que se dê, é sempre o mesmo. O nome até pode mudar,mas o sistema mantém-se: piramidal, hierárquico, previsível e, acima de tudo, imóvel.

Termino esta parte com a pergunta óbvia: que Madeira se constrói com este orçamento? A resposta, por muito que custe, é esta: nenhuma. Este não é um orçamento de construção. É um orçamento de conservação. Conserva o poder, conserva os votos, conserva os lugares. A Madeira nova, digital, aberta, empreendedora e livre que poderia ser construída com ideias novas, com autonomia fiscal real, com aposta radical no talento e na produtividade, essa Madeira continua no domínio da hipótese. E o orçamento, em vez de abrir caminho, constrói muros.


Parte VI

Conclusão: o que fazer com esta farsa e como rasgar o papel e começar de novo


Chegados ao fim desta travessia pelo deserto orçamental do regime, só resta uma coisa a fazer: pegar no Orçamento da Autonomia Socialista da Grande Laranja e colocá-lo onde verdadeiramente pertence, no arquivo das soluções falhadas, ao lado dos boletins paroquiais do PREC e dos manifestos da Bloco de Esquerda. Isto não é um orçamento. É um plano de perpetuação. É uma oração ao passado. É o prolongamento da noite por mais um ano com a luz acesa só para parecer que há manhã.

Um governo sério, porque é disso que a Madeira precisa como quem precisa de ar, de luz e de vergonha na cara, teria rasgado esta proposta e começado de novo. Porque o que está em causa não é uma mera divergência técnica. É uma oposição frontal, estrutural, existencial. O que separa este orçamento de uma visão de futuro não é um desvio de rota. É um abismo.

Este documento, repetitivo e inócuo, não apresenta uma única reforma estrutural. Não reduz o Estado, não simplifica a máquina, não aposta na concorrência, não transfere poder para a sociedade civil. Vive da redistribuição, do expediente, do truque orçamental. É um orçamento para o Estado e pelos do Estado. Um orçamento de manutenção, de operação, de trincheira. E é esse, no fundo, o maior crime deste regime: ter transformado a autonomia num método de sobrevivência partidária.

Porque autonomia verdadeira não é pedir a Lisboa mais dinheiro com mais voz. Autonomia verdadeira é arriscar, assumir, decidir. É reduzir impostos não com diferencial permitido, mas com criatividade fiscal. É cortar despesa não nas rubricas que podem ser congeladas, mas nas estruturas que se eternizaram como parasitas. É privatizar aquilo que nunca devia ter sido público. É confiar mais no cidadão do que no funcionário. É criar mecanismos de voucher na habitação, na educação e na saúde, atrair talento com contratos simples e carga fiscal mínima, permitir escolas independentes e autónomas, liberalizar os transportes, abrir o mar à economia azul, vender património morto. É desestatizar a Madeira até que ela respire por si.

Na proposta que temos, não há uma única palavra sobre desburocratização. Não se fala de uma administração pública orientada por objectivos. Não se propõe avaliação independente de impacto de políticas públicas. Não se propõe uma única externalização. Não há auditorias regulares aos fundos. Não há contratos-programa com resultados mensuráveis. O que existe é uma floresta de verbas, uma montanha de lugares, um oceano de dependências e um céu fechado à mudança.

Cultura? Presa. Educação? Comandada. Economia? Subvencionada. Juventude? Subestimada. Território? Sobrecontrolado. Dívida? Aceite. Inovação? Ausente. Justiça social? Fictícia. E liberdade? Nenhuma. Porque este regime não acredita na liberdade, acredita na ordem, na máquina, na rotina, na segurança do conhecido. Governar, para esta gente, é impedir que algo mude.

Ora, a Madeira precisa desesperadamente de mudar. Precisa de cortar laços com o passado administrativo, com os feudos locais, com a noção de que tudo tem de passar pelo Governo. Precisa de investir em inteligência institucional, tecnologia, digitalização, independência das instituições, diversificação económica, descarbonização real, pluralismo cultural, transparência radical.

Propunha-se, por exemplo, um orçamento com cinco eixos:

  1. Autonomia Fiscal Real - aplicação de uma flat tax sobre o rendimento, com isenção total até determinado limiar, e introdução de um código fiscal simplificado, de inspiração estónia, com regime especial para investimento externo e nómadas digitais. (sim, sei que isso não é possível sem alterações significativas de leis nacionais)

  2. Choque de Descentralização – transferência de responsabilidades para municípios com contratos de desempenho e orçamentos vinculados a resultados. Redução a metade dos institutos públicos e fusão de direcções regionais inoperantes.

  3. Desestatização da Habitação – conversão da IHM num organismo de regulação e financiamento, não de construção. Vales para arrendamento livre, privatização de imóveis do Estado, liberalização do uso do solo. Moratória nos impostos à construção e licenciamentos.

  4. Cultura e Educação como Ecossistema Independente – modelo de financiamento por resultados, liberdade de criação, contratos plurianuais com entidades avaliadas por júris independentes. Estímulo à filantropia e ao mecenato cultural.

  5. Regime Especial de Inovação e Liberdade Económica – Zona Franca de Serviços Digitais, isenção de IRC a novas empresas por cinco anos, implementação de zonas de livre regulação para testes de novas tecnologias, liberalização das profissões reguladas.

Nada disto é utopia. Já foi feito. Noutras ilhas. Noutras realidades. Noutras autonomias. Mas para isso é preciso querer. É preciso sair da lógica de gestão doméstica da coisa pública e entrar na lógica de transformação. É preciso governar com princípios. Com audácia. Com ideias. E sobretudo com a noção de que o Estado deve servir, não dominar.

Este orçamento não serve. Este regime não serve. Esta cultura política, construída a partir do medo de perder o poder, é a principal razão pela qual a Madeira estagnou. E, como bem sabia Tocqueville, “as sociedades que não se reformam por dentro serão reformadas pela força de fora”.

E então, agora que tudo isto foi dito, que nome se dá a este orçamento? Eu não hesito. É o Orçamento da Autonomia Socialista da Grande Laranja. E deve ser rejeitado com o desprezo que se reserva aos documentos sem coragem.

Junho 2025

Nuno Morna



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