Funchal à Venda: A Cidade Como Negócio de Família.
[Prometeram 120 medidas, executaram menos de um quarto, mas entregaram a Praia Formosa ao betão com pontualidade suíça]
Chegaram ao poder como se fossem refundar o Funchal. Apareceram com ar de quem tinha estudado tudo, planeado tudo, prometido tudo. Mais de cento e vinte medidas. Cento e vinte promessas, cento e vinte compromissos solenes, cento e vinte ideias que, a julgar pelos panfletos e entrevistas, iam finalmente corrigir os erros de décadas, abrir a cidade ao futuro, devolver o Funchal aos funchalenses. Uma coligação entre o PSD e o CDS, liderada então por Pedro Calado, que passaria o testemunho a Cristina Pedra como se se tratasse de uma sucessão dinástica, um prolongamento de família política, um favor ao partido, não à cidade.
Mas passados anos, o que se pode constatar, sem rodeios nem eufemismos, é que nem um quarto daquelas medidas foi executado. Nem um quarto. E mesmo entre as poucas que foram tocadas, a maioria não passou de intenções vagas, reformulações cosméticas ou simples exercícios de relações-públicas. A habitação? Reduzida a promessas e parcerias mal explicadas. A mobilidade? Uma manta de retalhos de obras dispersas, incoerentes e sem um plano estruturado. A transparência? Um conceito que parece ter sido deixado num gavetão da autarquia ao lado das atas por publicar e de um presidente que se demitiu porque tornado arguido. A participação pública? Reduzida a sessões formais onde os cidadãos são ouvidos por obrigação, não por convicção.
E mesmo este fracasso, que por si só já seria motivo de contestação séria, é apenas pano de fundo para algo muito mais grave: o caso da Praia Formosa, que não é uma excepção, mas o culminar lógico de uma governação que nunca teve outro objectivo senão acomodar os interesses certos, os do betão, da hotelaria de luxo, da privatização subtil do território.
Cristina Pedra, actual Presidente da Câmara, vem agora dizer que só em 2024 soube do impedimento jurídico que impossibilita o licenciamento de projectos na Praia Formosa. Só em 2024. Como se o plano de pormenor não estivesse por concluir desde os tempos em que o anterior executivo trabalhava no documento. Como se não soubesse que qualquer licenciamento naquela zona, sem esse plano, roçava a ilegalidade. Como se fosse crível que a autarca, rodeada de técnicos, juristas e engenheiros, tenha sido surpreendida por uma evidência jurídica que qualquer estudante de urbanismo conheceria.
O Grupo Pestana, omnipresente, omnipotente, omnibeneficiado, estava pronto para avançar com mais um empreendimento de luxo, acompanhado de Cristiano Ronaldo como figura tutelar da coisa. Mais de uma centena de apartamentos, acesso automóvel à beira-mar, a construção de sete edifícios numa das poucas áreas da cidade ainda não completamente colonizadas por projectos imobiliários. Em troca, uma esmola urbanística: 3.810 metros quadrados de terreno “cedidos” para um jardim. Como se a cidade devesse ajoelhar-se de gratidão por receber um naco de verde artificial em troca de perder um pedaço do seu litoral. Como se isso equilibrasse a equação.
Tudo isto foi feito, e continua a ser feito, com a cobertura cínica do discurso do “desenvolvimento”. Um desenvolvimento que exclui, que encurrala, que empurra os funchalenses para longe do mar, que transforma cada pedaço de território num produto imobiliário para consumo exclusivo de quem pode pagar. E tudo isto enquanto o executivo camarário falha medida após medida, promessa após promessa, sem prestar contas, sem assumir responsabilidades, sem sequer corar.
Há aqui uma fraude política, uma fraude ética, uma fraude moral. Apresentaram-se como gestores competentes, como técnicos esclarecidos, como agentes de mudança. E no fim são apenas os continuadores, com verniz moderno, do mesmo regime de favorecimento e mediocridade. Prometeram governar com base num programa, e acabaram a governar com base em negócios.
E agora, com os projectos travados pela justiça, Cristina Pedra ainda tenta sacudir a água do capote com a promessa de “soluções técnicas” e “unidades de execução coerentes”. Palavras ocas. O que está em causa não é um erro técnico. É um modelo. Um modelo que trata o solo urbano como mercadoria, que reduz o espaço público a moeda de troca, que vê o território como potencial de receita e não como parte integrante da vida das pessoas.
O Funchal está a ser desfeito aos poucos. Não por um cataclismo súbito, mas por uma sucessão de decisões políticas cobertas de tecnocracia e linguagem neutra. A cidade torna-se cenário, maqueta, maquilhagem. Cada novo projecto privado é vendido como regeneração, mas significa perda: de acesso, de paisagem, de pertença.
E o mais trágico é que tudo isto se faz com base num contrato político quebrado. Foram eleitos com um programa. Um programa que não cumpriram. Um programa que usaram como escada para subir, e depois atiraram fora. A governação da coligação PSD/CDS no Funchal, agora sob a batuta de Cristina Pedra, é o exemplo acabado de como a política se degrada quando se abandona a ideia de responsabilidade pública em nome de um pragmatismo cego e de alianças com os mesmos de sempre.
Cento e vinte medidas. E o que ficou? Uma praia bloqueada, uma cidade calada, um executivo sem rumo. Não é só um fracasso. É uma traição.
Julho 2025
Nuno Morna

Bom.
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