O Pai Natal Chamado Neoliberalismo.
Chamam-lhe neoliberalismo como quem amaldiçoa um vizinho que nunca viu mas de quem ouviu dizer coisas horríveis. Dão-lhe nomes. Insultam-no. Culpam-no. Cuspiam-lhe, se o encontrassem. Mas o neoliberalismo, coitado, não aparece. Nunca apareceu. Não vem no Natal. Não manda postais. Não tem rosto, nem partido, nem uma bandeira concreta para queimar nas manifestações com palavras de ordem repetidas como orações tontas. É, como dizia aquele senhor cansado e mal-engomado que era professor no liceu e andava sempre a apagar o quadro com a manga do casaco, "um conceito esponjoso, desses que absorvem tudo o que não se sabe explicar".
Disseram-me uma vez que nasceu em 1932, o neoliberalismo, pela pena de um alemão chamado Alexander Rüstow, nome de sabonete, de detergente de loiça importado ou de marca de cadernos pautados. O Rüstow, segundo contam os que lêem mais do que devem, era um socialista cansado do socialismo, como quem come sempre a mesma sopa e começa a sonhar com bifes. Tentou criar um meio-termo, uma terceira via, entre os desmandos da esquerda delirante e os horrores do fascismo com os seus desfiles e queixos projectados. Chamou-lhe neoliberalismo num dia qualquer, talvez chuvoso, entre cigarros e chávenas de café frias, e foi-se embora. Mal sabia ele o que tinha feito. Era, como tantos homens razoáveis, um homem a mais num século de fanáticos.
E desde então, o termo anda por aí como um fantasma, como o Pai Natal depois de um divórcio litigioso, sem trenó nem renas nem presépio, a ser citado por pessoas que nunca o estudaram, que não sabem de onde vem, nem para onde vai, mas que o usam como insulto, como talismã, como despejo moral, como mero insulto. Quando a economia falha: neoliberalismo. Quando o salário não chega ao fim do mês: neoliberalismo. Quando o hospital atrasa a consulta seis meses: neoliberalismo. Quando chove dentro de casa e o senhorio não atende o telefone: neoliberalismo. O neoliberalismo é, em suma, o culpado universal. O bode expiatório das almas progressistas. O chibo da esquerda com curso superior.
No entanto, se perguntarmos, olhos nos olhos, a quem o amaldiçoa: o que é, afinal, o neoliberalismo?, ninguém responde. Balbuciam. Encolhem os ombros. Falam do FMI, da Troika, da Margaret Thatcher, da Merkel e do Pinochet, embora duvido que soubessem localizar o Chile no mapa. Falam de "mercado selvagem", de "capitalismo desregulado", de "ataques aos serviços públicos". Repetem frases lidas em editoriais trémulos, escritas por jornalistas que confundem Adam Smith com um banqueiro suíço e que acham que Hayek foi o técnico de som dos ABBA.
Hayek, aliás, escreveu que "a estrada para o inferno está pavimentada com boas intenções", e talvez fosse essa a melhor definição da política portuguesa desde o PREC. Um país onde se diz que se protege os pobres, mas se perpetua a sua pobreza com impostos sobre o pão e sobre o leite, e com subsídios que garantem que não precisam de sair da fila para o receber. Um país onde se diz que se combate a corrupção, mas se legaliza a promiscuidade entre o Estado e os grandes interesses económicos. E depois culpam o neoliberalismo.
Talvez seja verdade o que dizia Isaiah Berlin, com aquele tédio elegante de quem já viu tudo: que "a liberdade não é apenas o oposto da escravidão, é a possibilidade de escolher". E o problema é esse. O liberalismo, o verdadeiro, não o da caricatura com chifres e dentes de ouro, assusta. Porque entrega ao indivíduo o fardo de decidir. Porque não promete salvação. Porque não garante igualdade de resultados. Porque não assegura que todos terão casa, carro, férias, telemóvel e diploma, apenas assegura que podem tentar, se quiserem. E isso, para muitos, é uma violência insuportável.
Disse-me um dia um velhote de São Vicente com terra nas unhas, homem do campo com mãos como raízes, que "quem quer, arranja; quem não quer, arranja desculpas". E o neoliberalismo é a desculpa perfeita. Não se vê, mas está sempre lá. Invisível como uma brisa culpada. Uma nuvem de culpa pairando sobre as consciências confortadas por um Estado paizinho, que promete tudo e entrega muito pouco. Hannah Arendt, lúcida como um bisturi, disse que foi "o foco nas necessidades materiais que levou a Revolução Francesa a uma ditadura sangrenta, enquanto a americana, ancorada na liberdade individual, produziu uma democracia duradoura". Mas isso não interessa aos comentadores com tempo de antena e cabelo lambido. Interessa é continuar a fingir que a pobreza se combate com comícios e planos quinquenais.
O liberalismo, o tal acusado de neoliberalismo por quem tem medo das palavras, é uma coisa muito simples: respeitar os contratos, proteger a propriedade, limitar o poder do Estado, permitir que as pessoas decidam as suas vidas sem que um qualquer director-geral lhes diga o que podem e não podem fazer. Como dizia Bastiat, esse francês insuspeito, "o Estado é a grande ficção através da qual todos tentam viver à custa de todos". E o liberalismo é o único antídoto contra essa ilusão venenosa.
É isso que faz dele tão odiado. Porque não promete milagres. Porque não garante salvação. Porque não oferece desculpas. Porque trata o cidadão como adulto. E ninguém quer ser adulto. Preferem ser tratados como crianças crescidas, como adolescentes com cartão de eleitor, exigindo tudo ao mundo sem dar nada em troca.
E o neoliberalismo, esse boneco de palha sem corpo, serve para manter viva essa infantilidade colectiva. Como o Pai Natal, que existe enquanto houver miúdos dispostos a fechar os olhos e acreditar. Serve para preservar a ilusão de que se pode viver num país rico com políticas de país pobre. Que se pode ter Estado social sem base produtiva. Que se pode redistribuir sem criar. Que se pode consumir sem poupar. Que se pode prometer tudo sem fazer as contas.
Mas as contas são como a morte: aparecem sempre no fim. E quando aparecem, já não há desculpas. Nem neoliberalismo. Nem Pai Natal. Nem rendas congeladas. Nem subsídios. Só a realidade, nua, dura, suada, como uma fábrica ao fim do dia.
E nessa altura até os intelectuais de esquerda se calam. E alguns até emigram. Mas levam o Pai Natal com eles, na mala, ao lado das obras completas do Gramsci. Porque a mentira, quando repetida com fé, torna-se aconchegante. Como um casaco de lã usado. Como um slogan. Como um mito. Como o neoliberalismo.
Maio 2024
Nuno Morna

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