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Empresas como espelhos embaciados.

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[Quatro milhões para se dizer que se fez. Meio cêntimo por dia para calar a vergonha] O programa CRIEE, disseram com a solenidade de quem anuncia a descoberta do mar ou o nascimento de uma ilha nova ao largo da Ponta de São Lourenço, criou 570 empresas e 959 postos de trabalho desde 2015, e eu a imaginar os homens das fotografias com os papéis na mão e os olhos semicerrados do costume, como se tivessem acabado de inaugurar a liberdade ou pelo menos uma estrada, e por baixo os sorrisos de catálogo institucional que se repetem há tantos anos que parecem já vir colados às caras como aqueles óculos que os velhos não tiram nem para dormir. Cinco centenas e setenta de empresas, disseram, como se fosse coisa que tivesse peso ou substância, cinquenta e quatro por ano, uma por semana, uma por cada sete dias que passam sem que ninguém se lembre de perguntar o que foi feito das que vieram antes, das outras, das que já não estão, das que nunca chegaram a estar, das que nasceram para morrer no temp...

O candidato de Schrödinger.

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[Entre o cartaz e o caixão, uma ETAR e um talvez] O PSD-M, sempre criativo na arte de não decidir ou de decidir mal, acaba de apresentar ao Funchal, e, por extensão, à Madeira inteira, uma nova categoria da zoologia política: o candidato de Schrödinger. Aquele que é e não é ao mesmo tempo. Que está numa lista, mas fora dela. Que concede entrevistas, mas desmente a própria existência eleitoral. Um candidato que respira, fala, aparece na imprensa, mas jura que talvez esteja morto antes do primeiro panfleto. José Luís Nunes é um médico de respeito e respeitável, figura pública com alguma compostura, alguém que se deu ao trabalho de preservar a seriedade da vida pública como quem limpa as janelas de uma casa abandonada. E, no entanto, aqui está ele, sujeito à humilhação calculada de uma pré-candidatura sem convicção, feita à imagem do partido que o rodeia: desfeito, hesitante, mais preocupado com arranjos internos do que com qualquer ideia de cidade, projecto ou comunidade. O cenário escol...

Demagogia, ou a arte de nos servirem sempre o mesmo prato requentado.

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Aqui há uns dias, numa daquelas tardes mansas de sábado, em que o tempo escorre devagar e a televisão serve de companhia mais por hábito do que por interesse. Andava eu a fazer zapping, nesse gesto mecânico de quem procura qualquer coisa que o distraia sem pedir esforço, quando encalhei no canal V+, que passava concertos do FNAC LIVE. Saudosista que sou, e cada vez mais, confesso, fiquei por ali, preso ao ecrã, ao som de Lena D’Água. Já perto do final, entre o brilho discreto da banda e a elegância crua da voz, surgiu “Demagogia”, canção de outros tempos que, como certas dores, não passa. Cantou-a com aquela firmeza doce de quem sabe que ainda dói, e encantou. De vez em quando passa uma canção de 1982 que parece escrita ontem, ou amanhã, ou depois de amanhã, e talvez isso diga tudo sobre este país com fungos na memória, onde os discursos mudam de cor como os anúncios e os políticos aparecem nas ruas como formigas em tempo de pão doce. Ouve-se a letra, quase um relatório clínico de card...

Madeira “bate” o Estado… mas continua a correr atrás da dívida.

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[Quando refinanciar dívidas antigas com juros novos é vendido como milagre económico] A ideia de que a Madeira conseguiu “bater” o Estado nos juros, repita-se com o ar grave que os idiotas usam nestas alturas: bater o Estado nos juros, é, se não fosse triste, quase cómica. A política regional vive agora deste género de ficções orçamentais, inventadas para entreter a populaça e dar um sentido de grandeza ao que não passa de remendo, de operação banal, de gestão desesperada de um problema estrutural que ninguém quer enfrentar. A notícia, por si só, diz muito mais sobre o estado da política regional do que sobre qualquer suposta virtude da governação madeirense. A Madeira, como se sabe, vive pendurada nos subsídios da República e nos apoios europeus, afogada numa dívida que não controla e governada por um regime que há muito se especializou em transformar a necessidade em propaganda e a insolvência em feito de génio. Vamos aos factos, esses chatos que atrapalham a retórica. A operação em ...

O Entalamento.

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[o futuro chegou como uma maré suja, e o cais ficou entalado no meio do silêncio e da vergonha] Era uma manhã cinzenta. Uma daquelas manhãs em que o nevoeiro desce devagar sobre o porto como uma cortina húmida e pesada, cobrindo os contornos das coisas e tornando o mundo uma espécie de memória. As gaivotas gritavam sem saber porquê. O barulho dos motores chegava abafado, como se viesse debaixo de água. E o navio, o tal navio de 150 metros, avançava pelo canal estreito como quem entra numa igreja sem fé, empurrado por promessas e conveniências, guiado por gráficos e esperança, sem espaço para dúvidas, sem espaço para mais nada. Chamava-se Boa Esperança , ironicamente. Nome pintado em branco sujo na proa, letras cansadas como os olhos do piloto que o manobrava, mãos no leme e suor na nuca, a pensar nos limites, nos milímetros, nos centímetros que separavam o sucesso da catástrofe. Era novo, o piloto. Formado em Lisboa, sim senhor, brilhante nos simuladores, rapaz de boas notas e boa famí...

Horários do Funchal: Autocarros Vazios, Cofres Rotos.

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[Como os Horários do Funchal se tornaram o retrato perfeito da falência do serviço público e da mentira da gratuitidade] A história dos Horários do Funchal, qual tragicomédia de dinheiros públicos mal geridos, autocarros que circulam como sonâmbulos e utentes que se evaporam como fumo de cigarro antigo em paragens onde já ninguém espera nada, é um daqueles episódios que só não espantam porque a Madeira, há décadas, se habituou a viver no espanto. Um espanto domesticado, resignado, como quem assiste a uma telenovela pela milésima vez e ainda assim torce por um final diferente. E não é. Nunca é. Um milhão de euros de prejuízo num trimestre. Um milhão. Como se um milhão fosse pouca coisa. Como se um milhão fosse apenas uma questão contabilística, uma pequena correcção nos livros da empresa, uma vírgula fora do sítio, um azar. Um milhão de euros enterrado em três meses sem protesto, sem manchete, sem vergonha. E digo enterrado porque ninguém sabe o que foi feito dele. Não melhoraram os aut...

A Ilha Que Espera Pela Cura e Morre Calada.

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[109.753 razões para desconfiar de quem governa e nenhuma desculpa que resista à dor de quem espera] O JPP, a muito custo, como sempre que se quer saber a verdade nesta terra, recorreu à justiça para que se soubessem os números das listas de espera na Saúde. O que o documento mostra, e o que oculta, e o que diz entre dentes, como quem se confessa com vergonha, como quem sussurra a verdade antes de a negar, é que vivemos numa ilha doente, uma ilha que treme das pernas como um velho mal tratado, uma ilha com o sangue espesso de tanto esperar, com os olhos baços de tanto ser ignorada, uma ilha que já nem reclama, que já só respira por reflexo, como quem se habituou à asma crónica de um sistema em colapso. Os números estão lá, frios, insensíveis, exactos como lâminas de bisturi: 109.753 actos clínicos em lista de espera, 109.753 pequenos infernos em pausa, 109.753 formas de sofrimento numeradas, arquivadas, empilhadas numa gaveta qualquer do edifício cor-de-rosa da Secretaria da Saúde, ess...