O Não Só Mas Também.

[Quando todos são arguidos, ninguém o é. A arguidade como linguagem oficial do poder instalado.]

Calado (e outros).

Calado (e tantos).

Calado (e quase todos).

Calado com o seu fato escuro que parece comprado num sábado de manhã no Madeira Shopping, antes do almoço com a mulher que já não o escuta, com a camisa branca muito branca, branca como os lençóis passados a ferro pela senhora de Santa Quitéria que vai lá três vezes por semana e a quem ele nunca agradece, com os sapatos a brilhar não do uso mas do verniz, com o andar estudado e a gravata posta com precisão de funeral, a sair da Polícia Judiciária como quem sai de uma pastelaria em São Martinho depois de um café curto e dois dedos de conversa sobre o tempo, o tempo que está abafado, sim, abafado, abafado como tudo por aqui, abafado como esta terra onde já não se respira e onde ser arguido passou a ser o novo passaporte para o poder.

Dizia-se há dias, nos jornais, nas rádios, nos sussurros mornos das redacções, que Calado "também" era arguido, "também", como quem diz que o vizinho do terceiro esquerdo também apanhou Covid, ou que o primo afastado também se divorciou, ou que o cão do Sr. Abílio também mordeu o carteiro. O "também" com aquele tom de quem se encolhe de ombros e muda de assunto, o "também" do costume, o "também" repetido até à náusea, até se tornar inofensivo, inodoro, invisível, o "também" que já não causa comichão nem espanto, um "também" que já não tem corpo, nem volume, nem consequência.

E Calado, claro, é arguido.

Como não havia de ser?

Foi vice-presidente do Governo Regional, foi presidente da Câmara do Funchal, foi promessa, foi continuidade, foi renovação, foi a cara nova do regime velho, foi o filho político de Albuquerque antes da bronca, foi o menino bonito da imprensa até deixar de o ser, foi a esperança do betão com vista para o mar, foi o gestor competente que sabia onde cortar, e onde não cortar, e onde adjudicar. Agora é arguido. Mas pouco. Um bocadinho só. Uma coisa lateral. Como quem se encosta numa fotografia de grupo e aparece só na margem da imagem, com meio rosto, uma orelha e um sorriso tímido.

E dizem-no assim: arguido, mas lateral. Como se houvesse arguidos principais e arguidos secundários, arguidos de primeira classe e arguidos de bagageira, arguidos que mandam e arguidos que só vão ao engate. Como se fosse possível estar implicado "só um bocadinho", como se se pudesse participar num crime com moderação, como se a corrupção tivesse dose, duas colheres de açúcar, meia colher de envolvimento, uma pitada de esquecimento, e mexer bem até desaparecer.

Mas a verdade é esta: vivemos numa terra onde a lista de arguidos parece a lista de presenças de um Conselho de Governo Regional ou de um Conselho Regional do PSD. Presidente do Governo? Arguido. Ex-presidente da Câmara? Arguido. Actual Presidente de Câmara? Arguido. Ex-Secretários Regionais? Arguido um, arguido outro, arguido aquele que estava na Agricultura, e o que estava na Saúde, e o que foi embora antes do tempo por razões "familiares". Directores regionais? Escolha à vontade do freguês. O ex-vice-presidente da Assembleia? Também. E depois há os empresários. E os construtores. E os chefes de gabinete. E os sobrinhos. E os filhos. E os primos de segundo grau. Uma árvore genealógica que daria um livro de Tolstói, mas sem a tragédia, porque aqui a tragédia é sempre adiada.

E o povo? O povo vai assistindo.

O povo assiste como assiste à procissão do Corpo de Deus, com o boné na mão, com o silêncio de quem sabe que não pode mudar nada, com a esperança (mínima, resignada) de que, talvez, desta vez, alguém vá preso. Mas não vai. Nunca vai. Porque os processos são grandes, e os advogados são bons, e as leis são complexas, e os prazos prescrevem, e a memória desaparece como a água da chuva nas ribeiras mal limpas. E depois, no fim, há sempre uma absolvição, ou uma arquivação, ou um esquecimento conveniente, e o arguido volta, volta como se nada fosse, como se a passagem pela Judiciária tivesse sido um retiro espiritual ou uma ida ao dentista.

E nós, os outros, vamos aceitando.

Vamos aceitando como se tudo isto fosse um fenómeno natural, como os incêndios em Agosto, ou os buracos na estrada, ou os engarrafamentos na via rápida. Vamos aceitando como se ser arguido fosse parte do percurso político, primeiro vereador, depois deputado, depois arguido, depois inocentado por falta de provas e, finalmente, condecorado com um cargo qualquer numa empresa pública.

Calado "também" é arguido.

Mas já ninguém se importa.

Talvez porque já todos saibam, lá no fundo, que a culpa é nossa.

Porque nos calámos.

Porque votámos neles.

Porque rimos das piadas.

Porque fomos às inaugurações.

Porque aceitámos os convites.

Porque, de alguma forma, também fizemos parte.

E agora, agora que tudo está à vista, agora que a verdade escorre pelas paredes do edifício da Polícia Judiciária, agora que os nomes se acumulam nos autos e nas manchetes, agora que a podridão se tornou paisagem, agora já é tarde.

Ou talvez não.

Julho 2025

Nuno Morna



Comentários

Mensagens populares deste blogue

Silêncio Frio: O Funeral Turístico do Ribeiro

O Dia em que o JPP se Demitiu de Santa Cruz.

O cadáver adiado que se recusa a sair de cena.