Os insultos de Eduardo Jesus ou a decomposição dos dias.
[Crónica de uma vergonha ordinária passada a papel oficial]
Importa registar, não porque tenha importância, mas precisamente porque não a devia ter e teve, o episódio sujo, sebento, engordurado de raiva mal digerida e poder já sem sabão que limpasse, em que o Secretário Regional do Turismo, Ambiente e Cultura, Eduardo Jesus, brindou os madeirenses com o que tinha dentro: um caldo grosso de grosseria, rancor de quem já perdeu a graça, mas não o microfone, e aquela forma especial de mediocridade que só o tempo entranhado nos corredores do poder consegue destilar.
Diz-se que chamou “palhaço-mor” ao deputado Rafael Nunes, “bardamerda” logo a seguir, como quem escarra sem se dar conta, tratou a deputada Sílvia Silva por “gaja” e a deputada Sancha Campanela por "burra do ca&%$%&, palavras que colam aos dentes como tabaco barato e que traz consigo, se escavarmos um bocadinho, o desprezo velho, bolorento, por qualquer pessoa que não pense como nós e o diga.
E não se trata aqui de uma defesa dos deputados, que se fazem defender com mais engenho do que aquele que cabe nos sapatos do Secretário. Trata-se do gesto. Do gesto e do lugar. Trata-se do modo como o Estado, ou o que resta dele, se senta no parlamento como quem se senta num urinol e confunde as paredes com alvos e o debate com descarga.
Não me venham com os apartes. Apartes é uma coisa, insulto é outra. Os apartes são regimentais, fazem parte do jogo político, são até um sinal de vida e de inteligência, às vezes até de humor, quando ainda se o usa. Os insultos não. Os insultos são a desistência da palavra, o colapso do argumento, o regresso à caverna. Os apartes são protegidos pelo Regimento. Os insultos não. Os insultos são inaceitáveis. Inadmíssiveis. E quando partem de um Secretário Regional, deixam de ser apenas grosseria: são violação consciente da liturgia democrática. São a mão suja do poder a esfregar-se no rosto do Parlamento.
O mais curioso, ou o mais trágico, ou o mais revelador, ou talvez tudo ao mesmo tempo, é que foi o próprio Eduardo Jesus quem, num outro dia qualquer, talvez com a gravata justa e o ego mais emproado, assinou com todas as letras um Código de Conduta da sua Secretaria, devidamente publicado no JORAM, onde se lia que “os trabalhadores da SRTC devem tratar todos aqueles com quem se relacionam, de forma cordial, respeitosa, ponderada, prestável e acessível”. Despacho Normativo n.º 2/2023, artigo 9.º, Princípio da Urbanidade, publicado no dia 24 de julho de 2023, I.ª Série, n.º 137. Mas não fica por aqui, pois o JORAM publica a 24 de dezembro de 2024, o Código de Conduta dos membros do Governo Regional, I.ª Série, n.º 196, onde no seu artigo 3.º, ponto 1, alínea f), volta a referir a obrigação do princípio da urbanidade.
A questão não é a falta de educação. A questão é que não há mais governo. Há apenas um grupo de homens cansados de si próprios, que já não sabem onde estão nem para que serve o cargo. Perderam o norte, o vocabulário e o pudor. Perderam, sobretudo, o medo de serem ridículos, o que é o primeiro sintoma do fim. Noutro governo, num país que não tivesse a alma adormecida por décadas de desresponsabilização endémica, Eduardo Jesus teria sido afastado antes de acabar a frase. Aqui, fica. Fica porque não há ninguém que lhe diga que já não. Fica porque o medo de que, ao cair ele, caia tudo o resto, é maior do que a vergonha. E quando se governa com medo, governa-se à bofetada, governa-se com palavrões, governa-se como se tudo fosse uma extensão do quintal e os deputados não passassem de vizinhos chatos a reclamar do cheiro a peixe grelhado na varanda.
O que vimos não foi um descuido. Foi um espelho. Um espelho do que se tornou o Governo Regional: um lugar onde se insulta sem consequências, onde o Código de Conduta é um papel para emoldurar e não para cumprir, onde se confunde autoridade com arruaça, e legitimidade com volume.
E, pior do que tudo, ninguém disse nada. A Mesa da Assembleia ficou calada como quem assiste a um espancamento em silêncio, por não saber se é melhor fugir ou fingir que não viu. Mas quando a direcção do parlamento assiste impassível à transformação da tribuna em taberna, então o que está em causa não é apenas o estilo. É a própria democracia. É o lugar onde ela vive.
Não nos demitimos disto. Não podemos. Porque quem se cala agora torna-se cúmplice de tudo o que vier depois. E o que vier, sabemos bem, há-de vir pior.
Porque quando a linguagem desce ao rés-do-chão, é sinal de que já não há tecto.
E quando já não há tecto, o que resta é esperar que chova.
Junho 2025
Nuno Morna
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