As Fantasias da Estatística
Acabou de sair o Boletim Trimestral de Estatística da Madeira. Nesta recente edição, a administração regional insiste, com um descaramento quase tocante, em pintar um quadro de prosperidade e progresso ininterruptos. Nesta obra de ficção estatística, somos bombardeados com a proclamação de um crescimento económico que já dura há 42 meses, um feito que, ao que parece, deveríamos celebrar com espumante de terceira durante uma visita do Sr. Presidente do Governo ao Salão Mikelina. Mas uma leitura atenta revela uma tapeçaria de omissões e distorções que roça o delírio.
A começar pela demografia, o boletim menciona, em passagem rápida e descomprometida, um saldo natural persistentemente negativo. Não se detém, claro está, nas causas ou consequências deste fenómeno, talvez porque uma reflexão mais profunda desvendaria uma realidade incómoda sobre o êxodo dos nossos jovens, uma taxa de natalidade muito reduzida e o envelhecimento da população. Mas por que perder tempo com trivialidades que apenas embaraçam os senhores no poder?
No sector imobiliário, uma elevação na avaliação bancária das habitações é apresentada como sinal de vigor do mercado. O boletim opta por ignorar como esse aumento se traduz em menos acessibilidade habitacional para o comum dos mortais, uma escolha de enfoque que seria cómica, não fosse ela trágica. De que importa a habitabilidade quando se têm estatísticas amarfanhadas para se vangloriarem?
Quanto ao turismo, o orgulho com que se reporta o aumento das dormidas e proveitos é sintomático de uma política de colocar todos os ovos na mesma cesta. A dependência quase patológica num único sector económico é um detalhe que se prefere omitir, talvez porque a diversificação económica seja um conceito demasiado complexo para as mentes ocupadas com as próximas eleições.
Numa tentativa quase desesperada de iludir o observador menos atento, temos discurso triunfal sobre o abate de frango, que apresenta um aumento, o que é de uma ironia brutal, quase divertida, se não fosse trágica. Como é possível glorificar-se tal façanha, enquanto sectores inteiros da economia afundam? A banana, essa pobre coitada, viu a sua produção cair a pique, enquanto o abate de gado e a captura de pescado seguem o mesmo caminho desastroso.
A taxa de desemprego, ligeiramente superior ao trimestre anterior, é manipulada para transmitir uma sensação de estabilidade. Usa-se tudo o que mexe - POT's, estágios, formações, para fingir que temos menos desempregados.
E a inflação — ah, a inflação! — é descrita com uma tranquilidade que só pode nascer da completa alienação. Estabilizada num patamar elevado, o maior do país, trata-se como se fosse uma pequena vitória, ignorando-se que continua a corroer o poder de compra da população. A disparidade entre o aumento do custo de vida e a variação salarial é outra área crítica frequentemente abafada. A variação salarial, apesar de positiva, não acompanha a inflação, resultando numa perda líquida de poder aquisitivo. Esta é uma realidade que a administração ignora ou, pior, minimiza nas análises superficiais e autocongratulatórias que faz.
Na frente energética, o aumento do consumo de combustíveis fósseis é tratado como um avanço, não como o retrocesso civilizacional que é. Celebra-se o aumento como se fosse um indicativo de progresso, enquanto fechamos os olhos aos seus impactos ambientais e à sustentabilidade. Mas, aparentemente, a perspectiva de futuro limita-se ao horizonte do próximo trimestre fiscal.
Por último, a autocelebração do crescimento económico prolongado, sem uma única menção à sua qualidade ou justiça distributiva, é talvez o maior truque de ilusionismo do documento. O crescimento é bom, dizem-nos, e não devemos perguntar mais nada. Questionar, afinal, é para os descrentes.
Este boletim não é mais do que um exercício de propaganda, onde a realidade é manipulada com tal destreza que convence o leitor desatento de que a Madeira é um oásis de prosperidade. A gestão atual, encastelada na sua torre de marfim, prossegue indiferente às verdadeiras necessidades dos seus cidadãos, tecendo loas a si mesma, enquanto a Madeira enfrenta tempestades que mereciam muito mais do que estatísticas maquilhadas e celebrações vazias. Parabéns, senhores governantes, pelo espetáculo pirotécnico de números e palavras; mas não esqueçam que, mais cedo ou mais tarde, a realidade tem a incómoda tendência de bater à porta.
Dezembro 2024
Nuno Morna
Comentários
Enviar um comentário