D. Sebastião
Henrique Gouveia e Melo, o último milagre saído da fábrica de salvadores da pátria. Não há cheiro a incenso nem coros de anjos, mas a liturgia é a mesma: um homem “limpo”, “neutro”, “fora do sistema”, enviado dos céus para nos resgatar da lama onde alegremente chapinhamos há décadas. O eleitorado rejubila, hipnotizado pelo discurso “suprapartidário”, essa deliciosa palavra mágica que parece prometer milagres sem o incómodo de debates, compromissos ou ideias concretas. Afinal, para quê política quando podemos ter o almirante?
É fascinante como o país nunca se cansa deste carnaval sebastianista. De tempos em tempos, lá aparece uma figura austera, com ar de quem lê livros difíceis e resolve problemas com meia dúzia de ordens rascunhadas numa folha A4. E nós, os crentes, caímos de joelhos, prontos para aclamar o novo D. Sebastião, desta vez sem cavalo, mas com um currículo militar impecável e uma capacidade admirável de evitar perguntas difíceis. Perguntem-lhe sobre políticas para a saúde, a educação ou o clima; ele responderá com um silêncio carregado de gravidade ou, melhor ainda, com uma metáfora naval. Tudo soa tão sério, tão credível, tão vazio.
E depois, claro, vem o mantra do “acima dos partidos”. Que maravilha. Um homem sem rabo preso, sem amarras ideológicas, sem “politiquices”. É a fantasia portuguesa por excelência: a política sem política, a solução sem escolha, o líder sem responsabilidade. É o equivalente nacional a acreditar que o Pai Natal resolve o défice ou que uma dieta milagrosa nos faz perder dez quilos sem largar os pastéis de nata.
Mas o mais divertido, ou talvez trágico, é que este sebastianismo de pacotilha funciona. O público, cansado e cínico, agarra-se desesperadamente a qualquer figura que pareça minimamente competente, mesmo que não faça ideia do que ela pensa ou quer fazer. No caso de Gouveia e Melo, é irrelevante saber o que ele propõe. Ele é “sério”, dizem. Ele “resolve problemas”, garantem. E isso basta. Afinal, pensar cansa.
Preparemo-nos, pois, para mais uma epopeia sebastianista, onde um país sem rumo deposita as suas esperanças num homem que promete tudo e nada ao mesmo tempo. Mas não se preocupem: quando o nevoeiro assentar e percebermos que o milagreiro é tão humano e falível como os outros, haverá outro messias à espera, com um discurso igual e uma promessa nova. É o ciclo eterno da nossa mediocridade.
Dezembro 2024
Nuno Morna

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