O Dia em que o JPP se Demitiu de Santa Cruz.
[Quando a política trocou a vitória pelo conforto e a lucidez pelo medo]
O que se passou na Comissão Política do JPP, entre cafés frios, mãos nos bolsos e as conversas abafadas no corredor antes da decisão, foi um acto que não tem nada de político. É, antes, um episódio clínico. O registo de um enfarte moral, de uma paragem respiratória estratégica. Não se trata aqui de preferências, simpatias ou alinhamentos pessoais. Nem de ter em conta que considero Élia Ascenção, a par de Raul Ribeiro, os dois melhores activos do JPP. Trata-se de um partido a amputar-se a si próprio em silêncio, como um homem que se fere e, por orgulho ou desespero, resolve ele mesmo serrar o braço, sem anestesia, com um chaveiro. O JPP, em Santa Cruz, acaba de cometer um erro que não é apenas táctico. É um erro existencial.
Paulo Alves foi escolhido por sete votos. Élia Ascensão ficou com seis. Uma diferença tão frágil que se desfaria com uma brisa mais insistente, com uma hesitação a mais, com um membro da comissão a engasgar-se num caramelo e a não levantar o braço a tempo. Foi um empate disfarçado, uma quase-vitória por desistência, e nem sequer teve a dignidade de se confrontar os dois nomes directamente. Bastava um pouco de vergonha na cara, uma segunda volta, um gesto qualquer que honrasse a inteligência das pessoas. Mas não. Preferiram o caminho do atalho, esse vício tão nacional, tão insular, tão medroso: o de fingir que decidiram quando, na verdade, apenas evitaram decidir.
E não se diga que não havia dados. Havia uma sondagem. Clara. Inequívoca. A mostrar Élia Ascensão como a mais bem posicionada. A mais reconhecida. A mais sólida. A mais capaz. Seguia-se Milton Teixeira. E só depois, bastante depois, Paulo Alves. Como é possível, pergunto, que um partido que se reclama da proximidade e do “ouvir as pessoas” ignore precisamente aquilo que as pessoas dizem? Que tipo de lógica interna sobrevive a esta negação da realidade? É isto que se chama estratégia? Ou é apenas o velho instinto de sobrevivência dos que mandam, não para vencer, mas para não perder o lugar na fotografia?
Élia Ascensão é, quer se goste ou não, um rosto conhecido, respeitado e presente. Não apareceu agora. Está lá desde o início. Conhece os bairros, os problemas, os nomes das ruas e dos que nelas vivem. Tem trabalho feito, visível. Tem uma relação emocional com Santa Cruz. Mas isso, para o JPP, não bastou. Ou, pior ainda, isso talvez tenha sido precisamente o problema. Porque o que se viu foi menos uma decisão racional e mais uma encenação de controlo. Uma daquelas liturgias partidárias que servem para que tudo mude, sem que nada mude. Votou-se, claro. Mas votou-se como se marca presença numa missa em que já não se acredita. Levanta-se o braço como se levanta a hóstia: por hábito, por obrigação, por medo de parecer herético.
Milton Teixeira, homem que é rosto do JPP e nome forte e querido no Caniço, mesmo sendo candidato, mesmo tendo ambição de ser candidato, declarou-se a favor de Élia. E nem isso bastou. E o que resta perguntar é: para que serve, afinal, uma liderança? Para propor caminhos ou para obedecer àquilo que se decide nos bastidores, entre duas chamadas telefónicas e um cafezinho morno na sede?
Há nisto tudo um cheiro a mofo político. Aquele cheiro que vem das salas onde se fecha tudo por antecipação, onde os votos são apenas a validação pública de decisões privadas. Um cheiro que lembra os velhos partidos, aqueles que o JPP dizia querer combater, e que agora imita com uma exactidão patética. E não me digam que é injusto, que Paulo Alves é uma pessoa decente. Ninguém está a discutir o carácter de ninguém. A política não é uma prova de moral. É uma leitura do contexto. E o contexto, neste caso, grita: má escolha.
Escolher o candidato pior posicionado, contra os dados disponíveis, ignorando os apoios mais relevantes e dispensando a única figura com base popular sólida, é de uma miopia que só se compreende se se aceitar o seguinte: o JPP está mais preocupado com o seu aparelho do que com o município. Está mais interessado em controlar os seus do que em servir os outros. Santa Cruz, para este JPP, já não é um território a conquistar. É um espólio. Um património herdado que se gere entre fiéis e que se distribui como se fosse uma quinta. Com as vacas magras que restam e os caseiros habituais.
Para quem, como eu, eleitor de Santa Cruz, nunca votou no JPP, esta farsa interna tem o mérito de confirmar o que já se suspeitava. O JPP não se pode dar ao luxo de perder a câmara de Santa Cruz. O partido que cresce em 2025 como nunca cresceu, o partido que nasceu para ser diferente, que apareceu com a retórica do povo e da independência, não aguenta o que criou e arrisca tornar-se uma caricatura de si mesmo. Um boneco articulado que repete frases feitas enquanto tudo se desmorona à sua volta. E não será com truques de bastidor que vão recuperar a confiança. Porque há erros que não se apagam com comunicados. Há traições que não se lavam com desculpas. E esta decisão, na verdade, foi tudo isso: um erro, uma traição, uma prova de que o JPP perdeu a coragem, e talvez a alma.
Santa Cruz vai perceber. Santa Cruz vai lembrar. Santa Cruz não é estúpida. E por muito que se tente empurrar a realidade para debaixo da carpete do partido, a carpete começa a ter demasiados altos e demasiados corpos por baixo. O problema do JPP não é ter feito uma má escolha. É ter escolhido deixar de ser aquilo que prometeu ser.
E isso, como todos os abandonos, não se perdoa.
Maio 2025
Nuno Morna
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