O cadáver adiado que se recusa a sair de cena.

[ou já nem sei se vale a pena continuar a bater no ceguinho]


Perdeu. O homem perdeu. O rosto vago, embaciado, uma coisa que só os partidos sabem nomear. Perdeu como se perde quando não se tem mais nada a dizer que se ouça, perdeu como quem esvaziou o conteúdo e ficou só com o recipiente. Mas não saiu. Ficou. Continua ali. A colar-se à cadeira com cuspo e papel de embrulho, a encostar o queixo ao microfone, a repetir que sim, que aceita, que compreende, que é tudo uma questão de princípios. E a gente a ver, coitados, cansados por mais um ataque de vergonha alheia.


Eu ouvi-o. Ouvi-o na televisão com aquele tom de padre cansado de funerais de pobres, a dizer que “aceitamos com humildade o voto dos madeirenses”, como se o voto fosse uma bofetada bem dada e ele, resignado, se deixasse bater em nome da democracia. E eu ali, na sala a olhar para o ecrã, a pensar: quem é este homem que fala como se ainda tivesse qualquer coisa para liderar? Quem é este homem que olha para o abismo e vê uma tempestade importada da Europa? Uma praga chamada populismo, um vírus político que desceu pelos Alpes, saltou por cima do continente e veio, justo a ele, cair-lhe no colo?


Não há culpados no discurso de Cafôfo. Só há forças cósmicas, vagas de descontentamento, marés de ignorância. Nunca ele. Nunca o que fez. Nunca o que não fez. Nunca o que prometeu e não cumpriu. O povo está errado, pensa ele. O povo, essa entidade que vota como não devia, que se desvia do caminho certo, que não reconhece o mártir de sacola ao ombro que atravessa a Madeira com palavras de esperança morta. O povo está cansado, diz ele. Cansado de quê? De ser pobre? De não ter alternativa? De o ouvir?


E depois há essa frase. A frase com que os derrotados se tentam elevar: “O pior que podia acontecer era o PS deitar a toalha ao chão.” A toalha, Dr. Cafôfo, não está no chão. Está enterrada. Foi pisada, molhada, rasgada. E o PS, esse PS que ainda pensa em comícios com bandeirinhas, militantes aos saltos e bandejas de bolos, está à espera que alguém, alguém com coluna e vergonha, diga que basta. Mas não é o senhor. O senhor fica. Fica com a pose triste de actor sem palco, com a convicção de quem ainda acha que lidera porque ninguém lhe disse o contrário com letras gordas.


E repete os valores. Os tais valores. Os valores que o obrigam a ficar, como se fosse um dever. O valor de não ceder. O valor de resistir. O valor de se recusar a admitir que já não o querem. A resistência, essa, não é ao populismo. É à evidência. Ao espelho. À realidade.


No meio da ruína, anuncia que Emanuel Câmara será “um farol”. E eu, sentado, imaginei-o: um farol aceso num rochedo escuro, com gaivotas cegas a baterem-lhe nas janelas. O farol, afinal, não guia ninguém. Ilumina o nada. E o PS, de farol aceso, continua à deriva, com o leme entregue a quem já nem sabe onde fica o porto. Emanuel Câmara, esse outro homem gasto que sobe ao palco com a mesma energia burocrática de quem arquiva papéis. Mais do mesmo. Mais silêncio com fatos escuros e discursos de missa.


O PS não precisa de mártires. Precisa de quem tenha a coragem de dizer que falhou. De sair. De dar lugar. Mas Cafôfo não sai. Promete preparar o partido para as autárquicas, como quem promete a uma casa a cair que vai comprar tinta para a fachada. E diz que não se demite porque tem coragem. Coragem. Palavra vazia como os  seus discursos. Como o partido. Como esta democracia feita de rituais tristes, de homens que perderam e não desistem, não por grandeza, mas por vício. Porque não sabem fazer mais nada. Porque têm medo de voltar a ser ninguém.


E é isso. O medo. O medo de deixar de ser chamado. O medo de passar nos cafés sem que ninguém levante os olhos. O medo de ser lembrado apenas como o que tentou e não conseguiu. E esse medo, esse medo íntimo e miúdo, é o que o cola à cadeira como um cadáver que se recusa a deitar-se. Um cadáver que fala. Que jura que está vivo. Que acredita que a morte política é só mais uma campanha mal gerida.


E nós, cá fora, a vê-lo apodrecer de pé.


Maio 2025

Nuno Morna




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