Silêncio Frio: O Funeral Turístico do Ribeiro
Tavam três polícias de pé, parados, que nem três bonecos de cera acabados de sair da caixa do armazém da farda, com as botas ainda por enlamear, a cheirar a borracha nova e a desinfectante do barato, daquele que se usa pra limpar as cafuas e os cagatórios nos sítios onde já ninguém vai. Postos ali que nem bibelôs em cima da cómoda da sala da madrinha, com o mesmo cuidado de quem pousa um boneco de louça numa prateleira da lareira. Três polícias, sim, e um cheiro a truta frita que não vinha de lado nenhum, talvez da lembrança, talvez da teoria, talvez do tempo em que ainda se podia travar ali o carro num rebentão da estrada, por debaixo das árvores da Laurissilva, quando os cerrados ainda não tinham sido esburacados pelo progresso e os autocarros, grandes como cangalhas de ferro com turistas dentro, vomitavam bifes e camones e velhas de sandália ortopédica, verdadeiros pés de gesso de casaco fluorescente, gente que vinha ali pra respirar, diziam eles, como se respirar na Madeira não fosse uma coisa que se fizesse com barulho, fumo e cheiro a pão de casa com graxa de porco.
Agora não se pode parar. Agora, disse-me o homem do restaurante, a limpar as mãos num pano encardido de molho e vinho da casa, "agora nem o carepa¹ pára aqui".
E a estrada vazia. E as mesas às moscas. E os olhos do homem, olhos de grade² à chuva, a varrer a estrada como quem procura filhos perdidos numa feira. Os horários largam gente que nem lixo e fogem, como quem larga uma carga de semilhas podres, e depois lá têm de descer até São Roque do Faial, virar ali num cambalhaço³ apertado, dar a volta por entre ramos de loureiro e carros mal estacionados, subir de novo como quem sobe umas escadas com as pernas partidas e uma sacola cheia de saudade às costas. Os turistas vão-se até ao Miradouro dos Balcões, que é bonito, não nego, bonito como um postal antes de ser vendido, mas não compram nada, não falam, não tocam, não deixam gorjeta. Entram e saem da floresta como bisbis educados, fantasmas com botas Gore-Tex e bastões de caminhada, a temer que a natureza lhes morda as canelas ou que o musgo lhes entre pelos calcanhares adentro.
Desde terça-feira, disse-me ele com um ar de quem já não espera nada da vida senão a conta da Casa da Luz, "desde terça-feira que não vendo nem uma água, que não tiro um café, que não cheiro uma truta". Os guitas⁴, ali plantados, com olhos de cruz e cara de quem vai à missa, mas não reza, ocupam três dos poucos estacionamentos. Três carros da bófia, como três cruzes num arremo de colina. Um sinal de que aqui já ninguém vive. Um sinal de que se pode morrer devagarinho neste lugar, como se morre nos becos da memória onde já ninguém vai buscar canelos de urze nem se lembra que ali ainda há gente, e não só postais.
E no meio disto tudo, o bísenes⁵ das levadas, o carcanhol a cair que nem água na conta do IFCN, e ninguém, ninguém com dois dedos de testa que pense em comprar uma longueira e fazer um parque de estacionamento... uma coisinha simples, decente, prática. Não. O que interessa é proibir. O que interessa é mostrar que estão atentos, que há zelo, que há farda e há carro com luzinha azul. Que estão a guardar a floresta dos turistas e os turistas da floresta, como se ambos fossem perigosos. O que interessa é a encenação. Como dizia o outro, este país é um palco, e o Ribeiro Frio é só mais um acto triste, um arraial onde os festeiros já não sabem se devem continuar a fingir que isto é turismo ou imigrar para o Caniço e vender bananas em sacos de cinco quilos.
Quatro polícias, disse-me ele, quatro bastavam. Bastava pensar. Fechavam uma faixa, alternavam o trânsito, botavam ali dois sinais e pronto. Bastava inteligência. Mas aqui não há inteligência. Há zelo. Há farda. Há ordens. Há medo. Sempre houve medo. Este calhau é uma terra feita de medo, como se fosse um buraco mal tapado. E quem tem medo não governa, ocupa. O que fizeram ao Ribeiro Frio foi ocupá-lo, como quem ocupa uma casa abandonada e depois tranca a porta por dentro.
E o resultado? O de sempre: os negócios morrem, as pessoas vão pró fundo desemprego, os turistas continuam a vir, porque não sabem. Não sabem que aquilo era um sítio vivo, com cheiro a truta e a rebuçados de funcho, com vinho servido em copo gordo e ponchinha de limão, com madeirenses e estrangeiros a misturarem sotaques à beira da lareira, com gargalhadas a saltar pelas janelas. Agora querem fazer daquilo silêncio e veredas. Um silêncio bom para as fotografias. Um silêncio que ninguém escuta.
Tanta coisa a fazer, tanta coisa simples para resolver estes problemas e o Estado, o Governo, o que sabe fazer é proibir. Passou-se do 8 ao 80 porque a capacidade e o miolo são poucos, porque quem manda anda de cabeça destrambelhada.
¹ demónio ² cão ³ dificuldade ⁴ polícias ⁵ dinheiro
Abril 2025
Nuno Morna
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