REDE SOCIAL, 23 dezembro 2024
A Noite do Mercado e a Casa da Amelinha
1.
Noite do Mercado
A Noite do Mercado, uma celebração que em tempos foi
viva, autêntica, um corpo pulsante da Madeira genuína, transformou-se, hoje,
num teatro organizado, numa mise-en-scène onde tudo é demasiado limpo,
demasiado arrumado, demasiado morto. Caminha-se pelas ruas e percebe-se logo: a
espontaneidade foi assassinada e substituída por um folclore embalsamado, um
espectáculo com hora marcada, coreografado por quem acha que a tradição é coisa
que se possa vender em copos de plástico.
Lembro-me, há muitos quilos atrás, de ver os agricultores
das serras a descerem ao Funchal, carregados de fruta, flores e cheiro a terra,
a lama seca nos sapatos, os dedos calejados a segurarem laranjas como se fossem
o coração de Cristo. Lembro-me de ouvir as vozes a erguerem-se, desafinadas,
nas cantigas improvisadas, e do cheiro da carne de vinha-d’alhos a misturar-se
com o fumo dos cigarros e o hálito quente da poncha. Era uma confusão, uma
balbúrdia, uma festa de verdade, porque a verdade é sempre caótica, imperfeita,
suja. E agora? Agora não. Agora tudo é «organizado». E a palavra enjoa:
organizado.
O espírito da Noite do Mercado, a Festa, esse espírito
que vinha da terra, da alma das pessoas, foi sufocado. Em vez das bancas
simples, alinhadas por instinto e urgência, temos corredores desenhados como se
fossem as linhas de um hospital. Em vez dos cânticos espontâneos, temos palcos
erguidos para espectáculos programados, onde os artistas cantam como se
estivessem a preencher um formulário. E as gentes? Onde estão as gentes? As
gentes, com a sua espontaneidade, foram substituídas por outras de telemóvel em
punho, ávidos de registar tudo o que mexe sem fazerem parte de nada. A carne de
vinha-d’alhos, outrora preparada com o cuidado de quem cozinha para a família,
agora sabe a algo industrial, e a poncha, tão forte que fazia arder os olhos, é
servida aguada, diluída para agradar aos palatos delicados de quem nunca sujou
as mãos.
A Noite do Mercado tornou-se um produto, um item no
catálogo do entretenimento regional, um evento com bilhete de entrada gratuito,
mas que nos custa, a nós, madeirenses, a alma. E os responsáveis, esses que
proclamam o sucesso da festa, não percebem que o sucesso é a doença. Mais
gente, mais controlo, mais organização, mais polícia, menos vida. Não há espaço
para as crianças correrem, para os velhos gritarem, para os bêbados rirem e
chorarem ao mesmo tempo. Tudo o que era humano foi removido, esterilizado,
varrido para debaixo do tapete.
O que me dói, na verdade, é perceber que muitos já não
sentem a falta do que se perdeu. Porque, quando se perde algo devagar, tão
devagar que nem se nota, chega-se a um ponto em que a ausência já não faz eco.
As memórias apagaram-se e, com elas, a possibilidade de reclamar o que era
nosso. Ficámos com uma caricatura, um boneco de cera, e fingimos que é o mesmo,
porque é mais fácil fingir do que admitir que o coração foi arrancado e
substituído por uma máquina que bate sempre ao mesmo ritmo. Organizada, claro.
Sempre organizada.
2.
Casa da Amelinha
Miguel Albuquerque, na sua infinita sabedoria e
superioridade iluminada, declarou, com o ar de um César provinciano, que “isto
não é a casa da Amelinha”. Extraordinário! Quem diria que o presidente, depois
de anos a transformar a Madeira num circo de incompetência e amiguismo, ainda
tem a audácia de fingir que reina sobre um modelo de rigor e disciplina. Não,
caro presidente, não se iluda: isto é precisamente a casa da Amelinha, e o
senhor não é mais do que o porteiro incompetente que perdeu as chaves, deixou
os ratos tomarem conta da dispensa e agora culpa os inquilinos por não limparem
o lixo que o senhor espalhou.
A sua governação é um caso de estudo na arte de destruir
qualquer vestígio de seriedade. Sob a sua batuta desafinada, o Governo Regional
transformou-se numa tragicomédia de terceira categoria, onde os actores
tropeçam nos seus próprios papéis e os bastidores ardem enquanto o público
assiste, impotente, ao desastre. O senhor gaba-se de grandes feitos – obras,
festas, festivais –, mas tudo o que nos entrega são rotundas e túneis, projetos
megalómanos que nem um estagiário de engenharia aprovava, e uma ilha onde o
turismo é explorado como uma vaca leiteira prestes a desmaiar de exaustão.
E o mais fascinante nesta peça é a sua habilidade quase
artística para a negação. Porque, claro, a culpa não é sua. Não, nunca é sua. É
dos outros. São os críticos, os cidadãos ingratos, a oposição inexistente, ou
talvez o clima tropical que desfaz as suas promessas no calor da realidade. No
seu mundo encantado, as falhas são sempre acidentes infelizes, desvios
imprevistos na perfeição do seu plano divino. Ora, tenha dó. Nem os seus
apaniguados mais servis e cegos acreditam nisso.
Mas o mais sublime, o mais profundamente irónico, é a sua
incapacidade de reconhecer o óbvio: o caos e a desorganização que define esta
sua Madeira não são acidentes; são o produto directo da sua liderança. Isto é a
casa da Amelinha porque o senhor fez questão de deixar as portas abertas para
os compadrios, para os interesses mesquinhos, para a mediocridade que tomou
conta de tudo. É a casa da Amelinha porque a autoridade desapareceu, porque as
regras só se aplicam aos outros, porque o seu governo vive num estado perpétuo
de improvisação e irresponsabilidade.
No fundo, Miguel Albuquerque, o senhor não é mais do que
o mordomo incompetente desta casa. Insiste em varrer o pó para debaixo do
tapete, mas o pó acumula-se. E, quando alguém aponta o desmazelo, o senhor,
indignado, proclama que “isto não é a casa da Amelinha”. Pois saiba, caro
presidente: a sua negação é a única coisa que ainda nos faz rir. Pena é que já
nem disso temos vontade.
3.
Partidos Regionais
A Constituição da República Portuguesa, esse calhamaço
prolixo saído do delírio idealista pós-25 de Abril, proíbe partidos regionais
nas regiões autónomas. Trata-se evidentemente de um disparate monumental, digno
do provincianismo iluminado que infesta o regime. Os seus autores, animados
pelo sonho de uma coesão nacional fictícia, decidiram que a uniformidade
partidária seria a melhor garantia contra a fragmentação do país. Ingénuos?
Sim. Perigosos? Mais ainda.
Ora, a ideia de que partidos nacionais, desenhados por e
para o Continente, podem dar resposta às especificidades de territórios
insulares como os Açores e a Madeira, é de uma ignorância que beira o insulto.
O centralismo lisboeta, com os seus burocratas instalados no conforto da
capital, jamais entenderá, nem pretende entender, a complexidade de uma
economia insular dependente da monocultura turismo, da construção civil (daí o
GR ser uma espécie de estaleiro), da agricultura e da pesca ou da diáspora. A
Madeira para Lisboa é um cartão postal. Os Açores uma abstração exótica. E é
precisamente por isso que o veto a partidos regionais se tornou um instrumento
de alienação e não de coesão.
A narrativa oficial que nos vende a República como uma
entidade indivisível é tão velha como hipócrita. Sob o véu de um falso
igualitarismo perpetua-se a ideia de que as regiões autónomas devem ser
controladas à distância com fundos europeus e discursos vazios de
solidariedade. Mas a verdade nua e crua é que estas regiões são vistas como
fardos periféricos. Tolerados, mas nunca verdadeiramente integrados.
E aqui entra a necessidade — diria mesmo a urgência — de
partidos regionais. Porque só partidos locais, verdadeiramente enraizados na
realidade insular, podem defender os interesses das populações. Só eles podem
lutar pela preservação de identidades culturais que Lisboa trata como
curiosidades folclóricas. Só eles podem negociar de igual para igual com o
poder central e, mais importante ainda, com Bruxelas.
Os detractores, claro, falam de “ameaça à unidade
nacional”. Como se a unidade nacional não fosse já um mito mal disfarçado.
Veja-se o exemplo espanhol onde os partidos regionais proliferaram. É verdade
que a Espanha enfrenta tensões internas. Mas será que isso se deve ao excesso
de representatividade local ou à incapacidade de Madrid em lidar com as suas
periferias? Em Portugal o problema é outro. Não temos diversidade cultural
suficiente para que Lisboa se preocupe. E, no entanto, o centralismo sufoca
tudo e todos.
E não nos iludamos. O Estado português não cederá de
livre vontade. Este regime herdeiro directo da revolução é obcecado pela
uniformidade. Qualquer desvio, qualquer manifestação de autonomia genuína, é
visto como uma ameaça existencial. Mas a verdadeira ameaça está no próprio
regime, incapaz de perceber que a diversidade devidamente respeitada e
representada é uma força vital e não um perigo.
Portugal nas suas crises de identidade continua a tratar
os Açores e a Madeira como dependências geográficas quando devia encará-los
como realidades políticas e económicas únicas. E enquanto essa mentalidade não
mudar o discurso oficial sobre coesão nacional será pouco mais do que uma
máscara para esconder a inércia e a falta de visão do poder central. Se é isso
que queremos para o século XXI estamos bem entregues. Mas não nos queixemos
depois do que vier a seguir.
Está na hora!
Dezembro 2024
Nuno Morna
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