Soares é fixe?

 Soares é fixe?

Mário Soares faria cem anos. É impossível fugir à data sem reconhecer que, com todos os seus defeitos – que eram muitos – foi uma figura central da história portuguesa do último século. Mas não confundamos centralidade com grandeza. Soares foi, antes de mais, um sobrevivente. Um político de recursos infinitos, de instinto e ambição inabaláveis, que soube aproveitar as marés da história e moldar-se a elas com uma habilidade que, em Portugal, poucos alguma vez demonstraram. Mas grande? Grandeza exige outra coisa, algo que Soares, com a sua sede de protagonismo e a sua visão limitada pela vaidade, nunca teve.

Era socialista, ou pelo menos dizia ser. Mas o seu socialismo era uma manta de retalhos, mais pragmático do que ideológico, mais pessoal do que programático. Para mim, que sou liberal e sempre vi no Estado a maior ameaça à liberdade individual, o soarismo foi um desastre. Um país pequeno e pobre como Portugal não podia sustentar o tipo de intervenção estatal que ele advogava – uma máquina pesada, corrupta e ineficiente, perpetuada em nome de uma igualdade que nunca chegou. Soares confundiu democracia com distribuição de favores e liberdade com o seu próprio direito de fazer e dizer o que queria, enquanto o país tropeçava nos seus desvarios económicos e na sua desatenção crónica ao futuro.

E, no entanto, há que reconhecer: sem Soares, não estaríamos aqui. Não haveria esta democracia, com todos os seus defeitos, sem a coragem – ou talvez a teimosia – com que enfrentou o PCP e os militares esquerdistas durante o PREC. Sem a sua visão, por mais oportunista que fosse, não haveria esta integração europeia que nos salvou da irrelevância. A sua luta pela democracia, embora motivada em parte pelo seu ego monumental, foi genuína. Sabia o que estava em jogo e, nesse momento crucial, esteve à altura das circunstâncias. Não por idealismo, mas porque sabia que o seu lugar na história dependia disso.

Era um homem de muitos defeitos. Vaidoso, egocêntrico, incapaz de reconhecer um erro. Para Soares, tudo se resumia a ele: ele contra os outros, ele como o centro do mundo. Mas era também irresistível. Tinha uma energia, um carisma e uma habilidade para manipular os outros que faziam dele uma força da natureza. Podia ser um desastre como governante – e foi –, mas sabia mover-se no caos como poucos.

Hoje, ao lembrar os seus cem anos, não o celebro. Mas também não o ignoro. Mário Soares foi uma mistura de génio político e oportunismo, de coragem e desleixo, de grandezas e misérias. Como quase tudo neste país, foi insuficiente e, ao mesmo tempo, absolutamente necessário.

Dezembro 2024

Nuno Morna




Comentários

  1. Mários Soares era um político de ambição desmedida, com um pragmatismo que lhe permitiu adaptar-se às adversidades e navegar os cenários mais caóticos. No entanto, essa mesma capacidade estratégica era acompanhada por uma vaidade e um desejo de protagonismo que, por vezes, obscureceram a sua visão para o país. O seu socialismo não era tanto um ideal como um conjunto de concessões e compromissos. O resultado foi um Estado pesado, ineficiente e, muitas vezes, mais preocupado em sustentar a máquina política do que em servir o cidadão comum.
    Ainda assim, a história mostra-nos que Mário Soares foi indispensável. Sem a sua determinação, a democracia portuguesa poderia ter seguido um caminho muito mais turbulento, e a integração europeia talvez permanecesse apenas um sonho distante. Ele foi um governante imperfeito — um homem que confundia, por vezes, democracia com favores, liberdade com permissividade. Contudo, foi também um defensor incansável de princípios que hoje tomamos como garantidos.
    Vaidoso, carismático, egocêntrico, mas sempre hábil, Mário Soares era uma força da natureza que inspirava tanto admiração quanto críticas. Não celebro Mário Soares como herói, mas reconheço a sua importância. Ele foi, simultaneamente, a imperfeição e a necessidade de um tempo que exigia líderes de coragem.
    Portugal não seria o que é sem Mário Soares, e talvez o maior tributo ao seu legado seja admitir que o seu impacto foi tão imperfeito quanto decisivo. Afinal, são as contradições que moldam os verdadeiros protagonistas da história.

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