Eça, o espelho de nós
Os restos mortais de Eça de Queirós repousam, desde ontem, no Panteão Nacional. A decisão de trasladar o corpo deste gigante das letras portuguesas para aquele espaço de honra não é apenas um acto simbólico, é uma afirmação de que, entre nós, ainda há quem compreenda a dimensão civilizacional que Eça representa. No entanto, este tardio reconhecimento é ironicamente adequado ao autor que, ao longo da sua vida, viu o país reagir com uma mistura de admiração e hostilidade à força corrosiva da sua crítica social.
Eça de Queirós não era apenas um escritor brilhante, capaz de criar personagens e atmosferas inesquecíveis. Era, sobretudo, um diagnóstico implacável da mediocridade nacional. Não há em toda a sua obra uma linha de sentimentalismo indulgente ou de falso patriotismo. Pelo contrário, cada página é um ataque ao conformismo, à hipocrisia e à baixeza que viu a povoar as instituições e os costumes da sua época. Portugal, para Eça, era um país pequeno e mesquinho, dominado por uma burguesia inepta, que confundia civilização com aparências e progresso com retórica vazia.
A sua escrita, que misturava o sarcasmo cortante com a mais refinada ironia, expunha com precisão cirúrgica os vícios de uma sociedade parada no tempo. Eça não poupava ninguém. Nem os políticos, nem a igreja, nem os empresários, nem outros escritores, nem os fidalgotes suburbanos, nem as mulheres ansiosas de amores arrebatados, políticos, burguesia arrivista, ninguém se safava, todos eram alvo da sua lúcida dissecação. Em obras como Os Maias ou O Crime do Padre Amaro, retratou Portugal com uma honestidade devastadora, que poucos tiveram a coragem de enfrentar.
Mas Eça, como todos os grandes, não se limitou a criticar. No fundo da sua crítica estava uma exigência moral e intelectual, pois queria um Portugal mais livre, mais justo, mais europeu. Era, para usar uma palavra que abominaria, um “visionário”. Sabia que o país não podia continuar a vegetar num provincialismo cómodo e auto-complacente. O seu desejo de modernidade – literária, política e social – era o verdadeiro motor da sua obra.
Hoje, ao vê-lo finalmente elevado ao Panteão Nacional, é inevitável perguntar: será que Portugal mudou? Será que, mais de um século depois, já somos dignos da lucidez e da coragem de Eça? Ou continuamos, como escreveu, a ser “um país de bananas governado por sacanas”? Não é apenas Eça que entra no Panteão. Com ele entra também o espelho que nos estendeu. E a pergunta, talvez incómoda, mas necessária, persiste: teremos aprendido alguma coisa com ele?
Não me restam dúvidas, sem qualquer hesitação, que Eça diria que não. E teria toda a razão.
Janeiro 2025
Nuno Morna

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