A Circularidade da Política Madeirense

Este texto faz também parte da crónica de hoje, publicada no DN Madeira.


A Madeira são ilhas e as ilhas têm um destino próprio, fechado sobre si, como um carrossel que nunca pára de girar. A mesma música de feira, a mesma volta, os mesmos cavalos de madeira com a tinta gasta pelos anos. Sempre os mesmos rostos, sempre o mesmo discurso, sempre o mesmo partido, sempre o mesmo chefe, porque o chefe é sempre o chefe, porque se o chefe não fosse chefe outro chefe viria e este chefe foi chefe antes de ser chefe e por isso continuará chefe porque é chefe e ser chefe basta para se continuar a ser chefe. Como um velho relógio de parede que já ninguém ouve, mas que continua a bater as horas numa sala vazia.

Governam porque governam, e porque governam, governam bem, e porque governam bem, continuam a governar, e porque continuam a governar, é porque o povo assim quer, e se o povo assim quer, é porque governam bem, e se governam bem, é porque governam, e se governam, então governam bem, e se governam bem, então continuarão a governar, e se continuarão a governar, é porque governam bem. Como uma criança que se olha ao espelho e repete o próprio nome até o nome perder o sentido e não ser mais do que um ruído, um balbucio, uma coisa disforme sem princípio nem fim.
Dizem que a Madeira se desenvolveu, que a Madeira progrediu, que a Madeira cresceu, mas o que cresceu foi o asfalto, as rotundas, o consumo de betão, as estradas que nunca levam a lado nenhum, os projectos mirabolantes, os milhões que entram e saem, os anúncios de inaugurações, as fotografias nos jornais, os discursos, os cortes de fita, as placas comemorativas com o nome do chefe cravado em letras douradas, como se o chefe fosse um santo, um mártir, um salvador, uma entidade que paira sobre a ilha, a proteger o povo com a sua magnanimidade. O povo que vota porque sempre votou, que acredita porque sempre acreditou, que segue porque sempre seguiu, como se a história fosse um comboio numa linha única sem desvios, um comboio que parte de um passado nebuloso e avança para um futuro que já está escrito, que já está decidido, que já está garantido.

E a oposição? O que faz a oposição? Onde está a oposição, esse fantasma pálido que assombra corredores vazios, que levanta a mão em assembleias onde ninguém escuta, que fala para jornais que ninguém lê, que escreve comunicados que ninguém entende, que espera e espera e espera, à espera de uma oportunidade que nunca chega, à espera de um escândalo que nunca é escândalo, à espera que a maré vire sem saber que a maré já virou tantas vezes e que no fim o mar é sempre o mesmo, indiferente, imóvel, inatingível. A oposição que se indigna, que protesta, que promete mudar tudo, que jura que desta vez será diferente, mas que sabe que não será, que, no fundo, conhece bem a força da inércia, o peso do hábito, a segurança do conhecido, a resistência do medo. E quando chega a altura, quando se abrem as urnas e se contam os votos, o círculo volta a fechar-se, a história recomeça, o chefe continua chefe, e a oposição volta ao seu canto, a preparar-se para a próxima vez, para a próxima espera, para a próxima derrota, para o próximo silêncio.

E o povo, esse corpo difuso que enche as praças quando há festas e as esvazia quando há protestos, que sabe tudo e finge que não sabe, que vê tudo e finge que não vê, que encolhe os ombros porque encolher os ombros é mais fácil do que perguntar, que critica baixinho e nunca demasiado alto, não vá alguém ouvir, que se indigna ao jantar e esquece ao pequeno-almoço, que diz que está farto, mas vota no mesmo, que jura que para a próxima é diferente, mas quando chega a próxima é tudo igual. O povo que conhece o jogo, mas não quer jogá-lo, que sabe haver nomes que não se dizem em vão, que sabe a quem se deve telefonar, que sabe que certas portas só se abrem com as palavras certas e certos favores devem ser retribuídos com discrição. O povo que ri dos políticos, mas se curva perante eles, que desconfia, mas precisa, que resmunga, mas aceita, que sonha com mudança, mas teme-a mais do que a deseja.

E assim tudo continua, porque sempre continuou, e porque sempre continuou, continuará. Os mesmos rituais, os mesmos discursos, as mesmas promessas, os mesmos jantares em restaurantes escolhidos a dedo, os mesmos brindes a sorrir para a câmara, os mesmos apertos de mão demorados, as mesmas juras de lealdade inquebrantável. A estabilidade é garantida, a confiança renovada, a prosperidade assegurada, o progresso imparável. Que felicidade saber que tudo está certo, que tudo está no seu devido lugar, que nada precisa de ser mudado, que nada precisa de ser pensado, que nada precisa de ser questionado. E se, por um instante, uma sombra de dúvida ameaçar esta harmonia perfeita, bastará um novo anúncio, uma nova estrada, uma nova obra indispensável, uma nova fotografia, uma nova promessa, um novo discurso e pronto, problema resolvido. Porque o essencial não é governar, não é reformar, não é decidir. O essencial é repetir, repetir até que todos saibam de cor, até que todos repitam também, até que a própria realidade se renda e aceite, resignada, que este é o melhor dos mundos, que melhor do que isto é impossível, que melhor do que isto nem se pode imaginar.

Fevereiro 2025

Nuno Morna



Comentários

  1. Parabéns por este brilhante tratado sobre o "status quo" da política madeirense. A realidade que descreves evidencia a necessidade urgente de mudanças que quebrem este ciclo de resignação.
    Precisamos incentivar o pensamento crítico e o questionamento das práticas políticas enraizadas. A oposição ao sistema instalado deve ir além do protesto simbólico e apresentar alternativas políticas reais, capazes de mobilizar a população e inspirar confiança na mudança.
    A sociedade civil tem um papel fundamental neste processo. Movimentos sociais, associações independentes e um jornalismo de investigação robusto são essenciais para desafiar a narrativa dominante e trazer à tona as verdades muitas vezes silenciadas.
    Além disso, é indispensável investir em educação política, para que a consciência cidadã vá além das promessas eleitorais e permita às pessoas reconhecerem e desarmarem estratégias de manipulação.
    É crucial substituir o conformismo por um debate aberto, plural e corajoso sobre o futuro da Madeira, rompendo com a ideia de que este status quo é inevitável. A mudança começa quando deixamos de aceitar a repetição como destino e passamos a exigir um novo caminho.

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