Eu não quero saber de política
A política? Mas que política? Essa coisa cinzenta, pegajosa,
esse nevoeiro que se enfia pelos dias dentro e que toda a gente finge não ver,
essa névoa que nos tapa os olhos e que nos entra pelas casas sem bater à porta.
Mas não te preocupes, tu não tens nada a ver com isso, claro que não, tu és
apenas mais um dos que passam ao lado, dos que não querem saber, dos que
suspiram ao ver o telejornal e mudam de canal porque a vida já é difícil o
suficiente sem ter de ouvir discursos vazios de homens com fatos bem engomados
que nunca precisaram de procurar um médico no público ou de contar os trocos
antes de ir ao supermercado.
Não, não, isso são preocupações de outros. Se o preço da
gasolina sobe e sentes o peso do depósito a esvaziar-te a carteira, isso não é
culpa de ninguém, é o destino, é o fado, é o preço da insularidade ou uma
dessas expressões ocas que servem para justificar tudo sem explicar nada. Se os
produtos no supermercado custam cada vez mais e o carrinho de compras fica mais
leve, mas a conta mais pesada, paciência. É a vida. Sempre foi assim, sempre
será assim. E se os políticos andam por aí, a inaugurar coisas que ainda nem
estão acabadas, a prometer o que não podem cumprir, a estender sorrisos falsos
em feiras e mercados, isso é só teatro, um teatro que já dura há décadas, um
teatro que já ninguém questiona porque o guião nunca muda.
E a saúde? O hospital ali, no cimo da cidade, as macas
encostadas nos corredores, os doentes à espera, os médicos a tentarem fazer
milagres sem recursos. E tu, claro, que nunca ficas doente, que nunca precisas
de uma urgência, que nunca sentes o tempo a arrastar-se na sala de espera,
enquanto os outros se habituam à ideia de que por aqui nada se resolve
depressa. Se precisas de uma consulta, espera. Se precisas de uma cirurgia ou
exame de diagnóstico, espera mais. E se te dizem que talvez seja melhor ires a
Lisboa tratar disso, então vais. Porque assim foi sempre, porque assim será
sempre.
E as escolas? As crianças de mochila pesadíssimas às costas,
apesar dos “tablets”, os professores que entram e saem, que vão e vêm, que
lutam sem que ninguém os ouça. As aulas que ficam por dar, os miúdos que
aprendem a fugir sem terem aprendido a ficar, os anos que passam e os políticos
que batem com a mão no peito a falar de investimento e de futuro. Mas tu não
tens nada a ver com isso.
E a segurança? As ruas que mudaram, os bairros que já não
são os mesmos, a noite que já não se pisa com a mesma confiança, os becos onde
a droga circula como um rio silencioso, sempre ali, sempre a escorrer, sempre à
espera de mais um. Mas isso são histórias de jornal, tragédias anónimas, coisas
que acontecem a outros, nunca a ti. Tu fechas a porta e achas que basta.
E as estradas? Essas estradas que se abrem e se fecham como
feridas, esses túneis que rasgam a ilha de um lado ao outro, esses projectos
milionários que aparecem e desaparecem dos orçamentos como fantasmas. E os
políticos a cortar fitas, a pousar para a fotografia, a falar de
desenvolvimento enquanto as contas se acumulam e ninguém sabe muito bem para
onde foi o dinheiro. Mas não faz mal, Lisboa há-de pagar, o Estado há-de
cobrir, alguém há-de resolver.
E tu, claro, vais andando. Vais pagando. Vais votando ou não
votando, que vai dar ao mesmo. Vais ouvindo as notícias sem realmente ouvir,
vais falando da chuva e do sol e do mar e das coisas que interessam, das coisas
que se sentem, porque a política é para os outros, para os que discutem, para
os que acreditam que ainda há algo a discutir.
Segue a tua vida. Muda de canal. Olha para o lado. A
política não tem nada a ver contigo. Até ao dia em que tiver. E então, talvez
seja tarde.
Fevereiro 2025
Nuno Morna
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