Eu Sou Legião

Marcos 5:9


"E perguntou-lhe: Qual é o teu nome? E respondeu-lhe, dizendo: Legião é o meu nome, porque somos muitos."

Eu sou legião e estou cansado. Cansado de ver os mesmos rostos, as mesmas vozes, os mesmos gestos gastos de sempre. Cansado de ouvir as promessas feitas com aquele tom mole de quem já não acredita no que diz, mas diz porque tem de dizer. Cansado desta tristeza instalada como uma doença crónica, como um tumor que se acomoda no corpo e se recusa a morrer.

Sou legião e falo contigo. Contigo que olhas para o chão quando passas na rua. Contigo que finges que não vês. Contigo que já nem esperas nada e já nem te lembras da última vez que acreditaste em alguma coisa. Contigo que te sentas na esplanada e dizes que isto nunca muda e nunca vai mudar e que o melhor é nem tentar. Mas eu tento. Tento porque sou legião e porque a memória não me deixa esquecer.

Eu sou legião porque me lembro do tempo em que se podia falar e ninguém ouvia. Do tempo em que se escrevia para que ninguém lesse. Do tempo em que a esperança era uma coisa clandestina, trocada entre murmúrios no fundo dos cafés. Mas agora há esta liberdade gasta, esta liberdade velha, esta liberdade que é só uma palavra escrita numa folha de papel e que ninguém respeita porque já não tem peso, já não tem corpo, já não tem alma.

Sou legião porque estou farto. Farto desta deste país onde tudo se arrasta, onde os dias passam devagar como um comboio enferrujado num apeadeiro vazio. Farto de ministros que entram e saem, de discursos que se repetem, de decisões que nunca são decisões porque, no fundo, fica tudo na mesma. Farto de esperar. De ver os que partem porque aqui não há lugar para eles. De ver os que ficam porque já desistiram de partir. De ver os que mandam a fazer sempre as mesmas coisas porque ninguém os obriga a fazer diferente.

Eu sou legião porque ainda não desisti. Porque ainda há qualquer coisa em mim que resiste, que se agarra às paredes podres desta casa em ruínas e diz não. Porque ainda há qualquer coisa que não me deixa calar, mesmo quando sei que ninguém está a ouvir. Porque sei que há outros como eu, espalhados por aí, a escrever nos cadernos, a falar sozinhos, a olhar pela janela à espera de um sinal, de um gesto, de uma revolta que tarda, mas que tem de vir.

Eu sou legião e sei que um dia alguma coisa vai acontecer. Talvez um murmúrio. Talvez um grito que rebenta de repente no meio da multidão. Talvez um gesto pequeno que se espalha e contagia e se transforma num movimento, numa ideia, numa nova maneira de respirar. Sei que um dia este país há de acordar e perceber que já não há paciência para a mentira, para o cansaço, para a mediocridade.

Eu sou legião porque não sei ser outra coisa. Porque carrego em mim todas as vozes que nunca foram ouvidas, todas as histórias que nunca foram contadas, todos os nomes que nunca chegaram a ser lembrados. Sou legião porque não quero morrer calado. Porque quero acreditar, mesmo contra todas as evidências, que ainda vale a pena querer mais. Que ainda vale a pena querer outra coisa. Que ainda vale a pena querer.

Fevereiro 2025

Nuno Morna





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