Habitação: Burocracia, Impostos e Desculpas

Ontem o Sr. Presidente do Governo voltou a dizer “coisas”. O Sr. Presidente do Governo diz muitas “coisas”. O problema da habitação na Madeira não é um erro de gestão, uma falha pontual ou sequer uma questão de conjuntura económica. É uma consequência natural de décadas de oportunismo, favoritismo e incompetência, uma tragédia anunciada para todos menos para os que vivem a fingir que governam. No meio da euforia do turismo e da falácia do “desenvolvimento sustentável”, a região tornou-se um paraíso para especuladores e um inferno para quem somente quer viver aqui. Os preços das casas dispararam, os salários ficaram onde estavam (ou pior, tornaram-se ainda mais irrelevantes) e as soluções nunca passam de promessas vagas, estudos eternos e comissões inúteis. Mas isto não é um problema novo. É o resultado previsível de um regime que há anos só se preocupa em governar para os seus, deixando o resto entregue à fé e à resignação.

Comecemos pelo básico. O licenciamento. Construir na Madeira é uma odisseia. Uma espera interminável por autorizações que nunca chegam, um exercício de paciência onde cada despacho empurra o processo para mais um mês, mais um parecer, mais uma assinatura de um burocrata qualquer que acha que o mundo existe para lhe satisfazer as manias. Cada Câmara Municipal tem as suas regras, os seus pequenos poderes, os seus prazos absurdos. E ninguém simplifica nada porque a complicação é o verdadeiro mecanismo de poder. Um sistema que funcionasse sem entraves não permitiria favores, nem facilitismos, nem “jeitinhos”. E sem esses mecanismos, muitos ficariam sem a sua fonte de rendimento extra.

Mas não é só a burocracia que sufoca. A Madeira está aprisionada a uma ideia medieval de propriedade. Terrenos vazios, prédios devolutos, heranças que se eternizam num limbo jurídico sem solução. A especulação imobiliária não é um desvio do sistema, é o sistema. Os preços sobem, as casas multiplicam-se para turistas e residentes sazonais, enquanto os madeirenses são empurrados para periferias cada vez mais distantes ou forçados a dividir casas em condições indignas. Alugar? Boa sorte. Os contratos são curtos, os valores são ridículos e a garantia de estabilidade é uma miragem. Comprar? Missão impossível. Os bancos emprestam pouco, os preços são proibitivos e quem tenta construir enfrenta um mar de exigências impossíveis.

A falta de mão-de-obra qualificada, outro dos chavões repetidos até à exaustão, é um problema real, mas previsível. A Madeira passou anos a pagar mal e a exigir muito, como se os seus trabalhadores tivessem obrigação de aceitar qualquer coisa. Agora, quando a construção civil está em crise porque não há quem faça o trabalho, a solução milagrosa é importar mão-de-obra barata de onde calhar, enquanto os madeirenses qualificados partem para o estrangeiro, onde são pagos decentemente e tratados como profissionais. A mesma classe política que bate no peito a falar da “identidade madeirense” e do “direito a viver na terra onde se nasceu” não se coíbe de empurrar os seus jovens para o avião, porque, no fundo, nada lhes interessa para além do espetáculo eleitoral do momento.

E a carga fiscal? O discurso oficial repete a lenga-lenga do “apoio às famílias”, mas a realidade é outra. O Governo Regional arrecada milhões em IMT, IMI e outras invenções fiscais, enquanto mantém a narrativa do “apoio à habitação”. Apoia quem, exatamente? Certamente não apoia quem trabalha e quer ter casa própria. O IVA na construção é de 22%, não dedutível, claro, porque o Estado precisa da sua fatia de cada tijolo colocado. Depois vem o IMT, uma extorsão descarada que torna cada transação imobiliária uma bênção para os cofres públicos e uma desgraça para quem compra. O IMI, cobrado anualmente como se possuir uma casa fosse um privilégio insuportável. O imposto de selo, mais um detalhe para o saque ser total. No fim, quem se atreve a construir ou comprar acaba por financiar um Estado que não dá nada em troca - nem infraestruturas decentes, nem serviços eficazes, nem justiça funcional.

E o que dizer da lentidão processual? Um litígio imobiliário pode durar anos, um despejo pode transformar-se numa novela sem fim, e um herdeiro pode esperar décadas para conseguir usufruir daquilo que legalmente lhe pertence. O sistema judicial, sempre engasgado, sempre sobrecarregado, é um dos maiores responsáveis pela paralisia do mercado habitacional. Quem tem casa para alugar pensa duas vezes antes de o fazer, com medo de ficar preso num pesadelo jurídico. Quem herda um imóvel muitas vezes prefere deixá-lo ao abandono, porque regularizar papéis é um labirinto desenhado para esgotar qualquer um.

E enquanto isso, o Estado, esse proprietário incompetente, mantém um portefólio de imóveis devolutos espalhados pela ilha. Prédios que não servem para nada, casas que apodrecem sem função, terrenos que não são aproveitados. O Governo Regional fala de “planos” para reabilitação, de “estratégias” para reutilizar edifícios públicos, mas, na prática, nada acontece. E nada acontece porque ninguém quer que aconteça. Um imóvel devoluto nas mãos do Estado é uma oportunidade de negócio para alguém no futuro. O abandono é estratégico. O desperdício é intencional.

Quanto à famosa descentralização de competências, outro mantra eleitoral, trata-se de mais uma ficção conveniente. O Funchal decide, o resto da ilha acata. As autarquias repetem o discurso da autonomia, mas não têm poder real para resolver os problemas da habitação. São meras delegações do poder centralizado, presas às regras que o Governo Regional impõe.

E mesmo quando se falam de soluções concretas – simplificação burocrática, redução fiscal, incentivos à reabilitação, construção modular, novas tecnologias – nada avança porque nada disso interessa a quem vive da manutenção do caos. O direito de superfície em terrenos governamentais poderia permitir construções sem o custo proibitivo da compra do solo, mas esse tipo de solução racional não encaixa na lógica de especulação instalada. A revisão das cedências obrigatórias e dos critérios absurdos de construção poderia aliviar os custos, mas isso implicaria admitir que as normas actuais são um embuste. A flexibilização das regras para construção em altura, óbvia numa ilha com espaço limitado, é barrada pela mesma mentalidade tacanha que rejeita qualquer visão de urbanismo moderno. A criação de um tribunal especializado em questões imobiliárias poderia dar alguma previsibilidade ao mercado, mas isso tornaria a justiça menos lenta e, por conseguinte, menos rentável para quem dela se aproveita. A autoconstrução poderia ser incentivada, libertando os cidadãos da dependência das grandes construtoras que dominam o mercado, mas isso não interessa a quem lucra com o cartel instalado. Eliminar o zonamento exclusivo para moradias unifamiliares e permitir maior densidade habitacional ajudaria a aumentar a oferta e reduzir preços, mas, claro, a Madeira prefere manter uma estrutura urbana obsoleta e elitista. Incentivos fiscais para reabilitação urbana, apoio à construção modular e até a adopção de tecnologias como impressão 3D e automação podiam transformar radicalmente a habitação na ilha, mas nenhuma destas soluções se materializa. O coliving, os microapartamentos, a construção de unidades de habitação acessórias (ADUs) e até modelos financeiros inovadores que reduzam os custos de entrada no mercado poderiam ser explorados. Mas nada disto se faz. Não se faz porque o interesse nunca foi resolver o problema. O interesse sempre foi mantê-lo, geri-lo, usá-lo como argumento eleitoral e ferramenta de controlo social.

E assim continuará a Madeira: uma ilha onde os salários não acompanham o custo de vida, onde a habitação se tornou um mercado para especuladores e não para residentes, onde os jovens não têm alternativa senão partir, onde o Governo Regional diz uma coisa e faz outra, e onde a crise da habitação será sempre um tema de conversa - mas nunca uma prioridade. Porque resolver o problema implicaria mexer nos interesses instalados. E mexer nesses interesses nunca esteve nos planos de quem se alimenta deles.

Janeiro 2025

Nuno Morna



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