Merquior e a Farsa dos Falsos Liberais

O brasileiro José Guilherme Merquior foi uma das inteligências mais afiadas e sofisticadas do pensamento liberal no século XX. Não era um economista vulgar nem um tecnocrata fascinado por modelos matemáticos de mercado. Era um pensador de fôlego, um homem de cultura vasta, que atravessava com destreza a literatura, a filosofia, a sociologia e a teoria política. Falava várias línguas, estudou com Lévi-Strauss, doutorou-se na London School of Economics sob a orientação de Ernest Gellner, escreveu sobre Foucault, sobre estética, sobre literatura e, naturalmente, sobre liberalismo. Tinha o tipo de cultura que falta hoje aos políticos que se pretendem liberais, mas que, no fundo, não passam de pregadores de dogmas económicos ou burocratas a debitar estatísticas sobre crescimento e défice. Leram um livro ou nem isso e fazem-se de grandes entendidos.

Para Merquior, o liberalismo não era uma mera doutrina económica. Era uma visão da sociedade e do indivíduo, uma defesa intransigente da liberdade em todas as suas dimensões. Era um compromisso com a autonomia da pessoa, com o Estado de Direito, com a democracia e com a limitação dos poderes arbitrários, fossem eles do Estado, da tradição ou do fanatismo ideológico. Não era uma justificação para empresários ambiciosos nem um chavão para políticos que, quando confrontados com uma crise, chamam “mercado” a tudo o que não sabem resolver. Era uma filosofia de vida.

Foi precisamente por isso que distinguiu, com clareza, o liberal do liberista. O liberista, essa figura comum nas direitas de hoje, acha que a liberdade se resume à economia. Que basta um mercado a funcionar para as pessoas serem livres. Que qualquer intervenção do Estado é, por definição, um ataque à liberdade. Merquior desmascarou essa farsa. O liberalismo genuíno sempre foi muito mais do que uma defesa do mercado. Sempre foi, antes de mais nada, um compromisso com a liberdade política e social, com os direitos individuais e com a limitação do poder.

Os exemplos históricos demonstram a armadilha do liberismo. O Chile de Pinochet teve um mercado livre, mas censurou, torturou e perseguiu cidadãos. A China actual combina uma economia de mercado com uma ditadura implacável que controla cada aspecto da vida dos seus habitantes. Quem acha que a liberdade económica por si só cria uma sociedade livre está simplesmente a ignorar a história ou, pior, a tentar justificá-la. O verdadeiro liberal não aceita esse tipo de compromisso. Não há liberalismo sem liberdade política. Não há liberalismo sem liberdade de expressão. Não há liberalismo sem respeito pelos direitos individuais e humanos. Qualquer coisa abaixo disto não é liberalismo, é outra coisa, é liberismo.

Merquior também soube desmontar outra falácia comum: a ideia de que o liberalismo pode ser reduzido a uma reacção ao marxismo. Não pode, até porque o liberalismo é mais antigo que o marxismo. É evidente que Merquior combateu o marxismo e expôs, com o rigor de um verdadeiro erudito, as suas contradições e falhas teóricas. Mas não se limitou a isso. O liberalismo, na sua visão, não era apenas uma resposta ao socialismo, mas uma tradição intelectual autónoma, que se construiu ao longo dos séculos e que continua a evoluir. O liberalismo não precisa de um inimigo para existir. Ele é, por si só, a doutrina da liberdade e da dignidade humana.

Talvez por ser tão intelectualmente sério, Merquior nunca teve o reconhecimento devido num meio onde o debate político é frequentemente dominado por oportunistas e por falsos liberais. Mas a verdade é que, para quem se preocupa com a liberdade, ele continua a ser uma referência indispensável. Num tempo em que muitos fingem ser liberais enquanto namoricam com o autoritarismo, vale a pena lembrar a sua lição mais importante: ser liberal apenas na economia não é ser liberal. Quem acredita que liberdade significa apenas menos impostos e menos regulação nunca compreendeu o verdadeiro significado do liberalismo. Quem aceita censura, arbítrio e repressão política, desde que os negócios prosperem, não é liberal. É apenas mais um oportunista.

Janeiro 2025

Nuno Morna



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