Por Uma Direita Gramsciana

O estado da direita, ou do que dela sobra, assemelha-se a um cadáver mal disfarçado de entidade política. Derrotada sem glória, expulsa sem escândalo do espaço público, resiste como uma caricatura triste de si mesma, confinada a um triste ofício de contabilista, a discutir défices e impostos, incapaz de articular um pensamento que vá além da folha de Excel. Ora, sem cultura, sem um esqueleto que sustente uma ideia do mundo, não há política que resista, nem poder que perdure. Nisto, Gramsci - um comunista italiano, preso, doente, esquecido numa cela fascista - entendeu melhor a realidade do que todos os burocratas e aprendizes de Maquiavel que povoam os conselhos nacionais da direita contemporânea.

Gramsci, derrotado mas lúcido, não perdeu tempo a chorar. Descobriu, antes, que o verdadeiro poder não se joga nos salões ministeriais ou nos boletins de voto, mas na cultura, nessa paisagem invisível de ideias feitas, de dogmas aceites sem discussão, de consensos que ninguém ousa questionar. Chamou-lhe “hegemonia”, palavra elegante para descrever o óbvio: quem molda a cultura molda a sociedade. A esquerda percebeu-o há muito. Entranhou-se na universidade, nos jornais, nos livros, no cinema, nos púlpitos das igrejas quando ainda valiam alguma coisa. E enquanto a esquerda pacientemente ocupava o Ocidente, transformando devaneios marginais em verdades incontestáveis, a direita entretinha-se a contar votos e a confiar - ingénua e patética - que a tradição e os bons costumes se perpetuariam por gravidade.

O resultado? Uma derrota total. Não uma batalha perdida, não um revés temporário, mas uma rendição incondicional. Hoje, a cultura dominante olha a direita como se olha um fóssil, um bicho embalsamado num museu, tolerado por curiosidade arqueológica, mas sem lugar no mundo real. E a política, essa farsa de convenções e números, não passa de um reflexo tardio dessa derrota cultural. O poder, esse, já não lhe pertence.

Quer então a direita recuperar-se? Grande questão, essa. Talvez seja tarde demais, talvez o jogo tenha acabado. Mas se quiser, se por milagre algum sobrevivente ainda ousar pensar, terá de começar por onde nunca quis: pela cultura. Gramsci é o manual. Primeiro, entender que a guerra se faz nas instituições, que as universidades não são templos neutros, que os jornais não são simples veículos de informação, que o cinema, a literatura, a música não são meros entretenimentos. São armas, e a esquerda soube manejá-las como Napoleão manejava os seus exércitos. A direita, pelo contrário, abandonou o campo de batalha, resignada à irrelevância ou, pior ainda, à chacota.

Segundo, encontrar os tais “intelectuais orgânicos” de que falava Gramsci. Não os eternos burocratas do partido, não os tecnocratas amestrados, não os académicos pusilânimes que temem que um artigo de jornal os censure. A direita, se quiser existir, precisa de pensadores, escritores, artistas, gente que saiba traduzir conceitos áridos numa visão do mundo, numa narrativa que cative o povo, porque sem cultura não há política, e sem política não há poder. Neste momento, a direita não tem nada disto. Tem opinadores de circunstância, tem peões de talk show, tem economistas de tabela de Excel, e enquanto isto não mudar, não mudará nada.

Terceiro, construir um “bloco histórico”. Gramsci percebeu que uma hegemonia não se cria só com intelectuais e jornalistas, precisa de alianças, de uma coligação social que una interesses diversos numa visão comum. A esquerda fê-lo com mestria. Uniu operários, estudantes, intelectuais e movimentos sociais, fabricando um consenso em torno do seu projecto. A direita, pelo contrário, despedaça-se em mil facções, entre liberais, conservadores, nacionalistas, todos a odiar-se com mais fervor do que odeiam o verdadeiro adversário, a esquerda. Enquanto persistir esta atomização infantil, não há hegemonia possível, há apenas fragmentos, despojos de um exército sem comando. Uma vitória aqui, outra ali. Um descontentamento que induz ao populismo e a propostas ocas e vazias de uma pseudo-direita estatista.

Mas talvez a maior lição de Gramsci seja a do tempo. A cultura não se conquista numa eleição nem se vira num ciclo noticioso. Muda-se gota a gota, com paciência infinita, como quem esculpe uma montanha a cinzel. A esquerda soube esperar, construir pacientemente a sua vitória, ao longo de décadas. A direita, ao contrário, vive de soluços, de arranques entusiásticos seguidos de derrotas previsíveis. Quer tudo para ontem, quer resultados em seis meses, quer um hashtag viral, um escândalo mediático, um líder carismático. Não percebe, porque nunca quis perceber, que sem estratégia a longo prazo, sem um plano meticuloso e uma persistência de ferro, está condenada a ser, na melhor das hipóteses, um acidente eleitoral passageiro.

O caminho não será fácil, se é que ainda existe. Mas se há algo pior do que a derrota, é a aceitação da irrelevância. O primeiro passo? Perceber que o problema é muito mais fundo do que parece. O segundo? Ler Gramsci. E depois, quem sabe, começar a fazer qualquer coisa. Porque se nada for feito, se a direita insistir no seu papel de figurante, de nota de rodapé na história, então terá o destino que merece. E Gramsci, do fundo do seu túmulo, dará uma enorme e sonante gargalhada.

Fevereiro 2025

Nuno Morna



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