Quando eu Morrer
Gostava que, depois de morrer, as coisas acontecessem de
outra maneira, sem essa urdidura de palavras moles, sem esse veludo pegajoso
dos elogios tardios, sem essa procissão de gente contrita a dizer que, afinal,
sempre me estimou, que, afinal, até me respeitava, que, afinal, eu era um tipo
formidável, um homem de visão, um grande qualquer coisa que ninguém soube
reconhecer em vida, mas que agora, na morte, se torna evidente, como um cadáver
que flutua à superfície de um rio e, de repente, já não tresanda, já não tem as
chagas pútridas, já não é uma coisa feia, mas sim um mártir, um bem-aventurado,
um santo instantâneo canonizado pelo silêncio obsequioso dos que respiram.
Não quero hagiografias nem necrológios embonecados, nem essa
ladainha insuportável de adjectivos ocos, nem essa pressa em me transformar
numa estátua. Se fui um cabrão, digam-no. Se fui medíocre, apontem-no sem
rodeios. Se tive qualidades, que não as aumentem com essa generosidade postiça
que os vivos reservam aos mortos. O que fui, fui. E o que não fui, não quero
sê-lo agora, só porque deixei de incomodar, porque já não telefono, porque já
não escrevo, porque já não existo.
Não me venham com discursos solenes, com cera derretida, com
a compunção ritual dos que se põem em bicos de pés para parecerem humanos. Não
quero que me usem para lições de moral ou para exercícios de estilo. Deixem-me
em paz, sem esse verniz da nostalgia que transforma canalhas em homens de
Estado, salafrários em visionários, trapaceiros em referências. Não quero fazer
parte desse panteão de defuntos de conveniência onde, à força do tempo e da
hipocrisia, até os patifes acabam respeitáveis.
E, sobretudo, quero que me esqueçam. Que a minha memória se
gaste depressa, que o meu nome desapareça das bocas, que as minhas palavras
deixem de ecoar. A morte devia ser o fim, não um começo. Mas aqui, nesta terra
de lápides decoradas, morre-se para renascer numa ficção confortável. Quero o
contrário: ser cremado, as cinzas devolvidas à terra, sem epitáfios, sem
homenagens, sem essa insuportável necessidade de fingir que, no fim, éramos
todos bons. Que me recordem e amem os meus. Isso chega-me.
Fevereiro 2025
Nuno Morna
Já disse algumas vezes que quando o Nuno Morna morrer vai-nos fazer muita falta. Precisamos de pessoas inconformadas, irreverentes, humanas, com sentido crítico e justo. Por isso, se morreres antes de mim, não posso prometer que cumpra o teu desejo, que esqueça ou que deixe de falar em ti quando a ocasião vier. Também não sinto que esteja a te trair porque to disse e elogiei diretamente e em vida. Que tenhas muitos anos pela frente!!🙌
ResponderEliminarMuito obrigado, Sónia. Fico sempre sem saber o que dizer às pessoas que me têm estima. Não me sinto merecedor.
EliminarÉs um BRUTO!
ResponderEliminarNuno,
És um bruto, sim. Mas daqueles brutos que fazem falta ao mundo. Um bruto que não se esconde, que não se dobra, que não adoça as palavras para caber nas molduras da conveniência.
Um homem Bruto em tudo: no peso, na sabedoria, na resiliência, no amor pela música e pela literatura. És bruto numa ideologia liberal quanto baste, sem paninhos quentes, com a frontalidade de quem não precisa de máscaras nem vernizes. A tua voz poderosa ecoa não só pelo que dizes, mas por como o dizes.
E é por todas essas brutalidades, meu caro, que te estimo. Não somos os melhores amigos, mas é fácil respeitar-te. Porque muita gente, mesmo sem te conhecer, te estima — e, claro, outros tantos não te suportam. Porque és bruto. Porque desinstalas. Porque incomodas.
Intimidas, sim. Intimidas quem não tem argumentos. Intimidas os fracos de ideologia. Intimidas os falsos, os que vivem de fachadas, os que tremem diante da tua verdade cortante.
E sabes o que mais? Ainda bem. Porque num mundo cheio de vernizes e silêncios educados, ser bruto é ser necessário. Ser bruto é ser genuíno.
Continua assim: grande, frontal, autêntico. Porque há brutos que são, afinal, de uma nobreza que poucos alcançam.
Com estima,
Heitor
Meu bom amigo... muito me honras com as tuas palavras. Muito mesmo. Grande abraço.
EliminarOh Nuno ...
ResponderEliminarQue conversa é essa?
Além de por cá permaneceres por muito mais tempo, um dia quando faltares serão os que ficam que decidirão se és ou não merecedor de homenagem digna à tua pessoa.
Eu pessoalmente considero que tal como a Grande Senhora tua mãe e irmãs merecem ser relembrados pelo legado que deixaram à humanidade.
Fica bem ... e cuida-te.