Sermão de um Idiota aos Carneiros

à moda do Padre António Vieira,
que escolheu os peixes para conversar,
porque cada um fala com quem pode.

Depois de andar a pregar pelos quatro cantos da terra, o idiota, cansado de falar a homens que, tendo ouvidos, não ouvem, lambeu uma pedra de sal e subiu ao cimo do monte. Abriu os braços, pigarreou para aclarar a voz e bradou, desafiador:

— Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os carneiros!

E não aconteceu nada. Nem um lanoso se moveu, nem um chifre despontou sobre a erva. Por quatro vezes repetiu o chamado, e quatro vezes recebeu em resposta apenas o silêncio. Mas, persistente, voltou a abrir os braços e lançou a voz, desta vez tonitruante:

— Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os carneiros!

Talvez pelo estremeção do vozeirão, do meio da erva surgiram duas cabeças lãzudas. Magros que só vendo, de sexo indistinguível, subiram, apoiados um no outro, como se temessem que, sozinhos, não fossem suficientes para sustentar um pensamento.

O idiota começou a pregar, e os carneiros ouviram, com aquele olhar ausente que tanto os caracteriza.

— Se quereis que vos fale da democracia, dai-nos outra. Porque nesta, para sermos entendidos, temos de pregar como eles: tudo dizendo, sem dizer absolutamente nada.

Muito preguei por toda a parte e de toda a maneira. Fizesse sol ou chovesse enxofre. No meio de poucos e no meio de ainda menos. Disse das minhas verdades, sólidas e verdadeiras, falei da necessidade de emendar os erros e abrir caminhos de futuro. Disse que a visão se forma pela soma das partes, mas que o erro dos homens é julgar que apenas o seu umbigo tem contorno e volume.

Aqui estou hoje, a pregar aos carneiros, porque sou um idiota. Idiota porque ainda creio na utilidade de pensar diferente, porque ainda vejo no longe a única esperança do perto, porque sei que o nosso tamanho não se mede em palmos, mas em pensamento. Idiota, porque procuro entender o que nos rodeia sem a prepotência de julgar que somos mais, melhores ou maiores. Prego agora aos carneiros porque me cansei de pregar aos burros. Mas burros que, de fato e gravata, se arvoram em sábios. Pobres ignorantes carregados da empáfia das mulas, mas, ao contrário destas, com capacidade de reprodução. Tristes bardotos que nem sabem os caminhos da dignidade. Lamentáveis jericos que não sabem soletrar “boa governança” e julgam que governar é tão-só empanturrar-se à mesa dos impostos.

Desenganai-vos, carneiros, se pensais que os que lhes fazem oposição são melhores. Não há ouro de um lado e ferro do outro. Como toda a moeda, uns são “cara” e outros “coroa”, mas a excreção é a mesma.

Aos homens retirou Deus a vergonha na cara. Os grandes são hoje prepotentes, vaidosos, parasitas, devotamente ambiciosos, hipócritas, traidores, falsos, fingidos, flibusteiros e perniciosos. Com uma mão benzemo-nos, com a outra enchemos o bolso. E quando chegar a hora da verdade, quando o portão da eternidade se abrir, creem que poderão comprar a entrada. Não duvideis, carneiros, que os seus nomes já se acham inscritos no quinto dos infernos, na morada dos que renegaram o humanismo e fizeram do mundo um mercado de corrupção.

Aqui estou, pois, entre vós. Porque vós, carneiros, tendes muitas virtudes. Ouvís e não discutis. Quando falais, dizeis sempre "éééééééé", como quem concorda, ainda que não entenda. Obedecendo, sois dóceis; ouvindo, sois atentos. Por isso sois vós a razão de ser dos homens. Elevam-se à vossa custa, vivem do vosso lombo. Mas cuidai-vos, carneiros. Guardai-vos do trato e da familiaridade com tais homens, porque nada é mais perigoso do que misturar a lã com o lobo.

Também eu, confesso idiota, fujo dessa raça de homens. Pinto-me de todas as cores, mudo de nome se preciso for, mas não me deixo tomar pela ilusão de que é possível viver entre eles sem que nos arrastem para a sua lama. Só uma coisa não consigo: a solidão do eremita. Porque, por demais, me habituei a falar, e por demais, me habituei a ver. Preciso de vós, carneiros. Preciso desse vosso olhar de carneiro mal-morto, que nada percebe, mas tudo escuta, que não discute, mas sustenta as idiotias que me ocorrem. Como todos os pregadores, tenho duas missões: louvar o bem para que persista e denunciar o mal para que se extinga. Mas como nem homens nem jumentos me escutam, dirijo-me a vós, na esperança de que nem só de lã viva o carneiro.

Aos homens deu Deus a razão e, com a razão, o livre-arbítrio. Mas o que fizeram? Usaram-no como o asno usa a albarda: para carregar sobre si o peso da sua própria cegueira. Vós, carneiros, não tendes razão nem escolha. Tendes lã para ser tosquiados, cabeça dura para ser guiados, e o açougue à vossa espera. Acompanhai quem berra mais alto e deixai-vos convencer pelas três primeiras lérias que vos disserem.

Os tempos que aí vêm não serão bons para carneiros. Melhor seria dizer que nunca foram. Mas também não serão bons para homens nem para jumentos. Serão tempos de escassez e tempos de fome, tempos em que se passará de cavalo para burro, e de burro para coisa pior. E o que fazem os homens? Disputam futilidades, guerreiam-se em palavras ocas, discutem formas em vez de conteúdos, como se fosse pelo polegar voltado para cima ou para baixo que a terra se fecunda.

Nós, os idiotas, pregamos aos carneiros. Vós, carneiros, sois carneiros. Entendei, pois, que quanto mais buscais a felicidade, mais vos deveis afastar da companhia dos homens.

Como São Francisco de Assis, quanto mais conheço certos homens, mais gosto dos animais.

Vós, carneiros, tendes as pulgas para vos atormentar. Elas mordem-vos e vós sacudis-las. Os homens, ao contrário, têm carraças que lhes sussurram ao ouvido. São elas que os convencem de que são justos e bons, infalíveis e indispensáveis. São elas que lhes sugam o sangue, e eles, em vez de as arrancar, alimentam-nas.

Os culpados do estado a que chegámos sois vós, carneiros. Porque ouvis sem entender, porque olhais sem ver, porque sentis o ferro no lombo e apenas dizeis "ééééééé". Porque tendes nas mãos o poder de mudar e insistis em manter tudo na mesma.

Precisais de luz, carneiros. Precisais, como disse o poeta, que Cristo, em vez de morrer numa cruz por vós, antes tivesse pegado na lança que lhe rasgou o peito e com ela vos tivesse aberto os olhos, para que por esses buracos entrasse, ao menos uma vez, a claridade. Dois carneiros fazem uma carneirada. Foi pela carneirada que aqui chegámos. Carneirada são os que votam no mesmo, mas carneirada são também os que se recusam a votar, crendo que assim lavam as mãos. Estes são como os túbaros, estão lá, mas não participam.

Que Deus vos proteja e vos abençoe, carneiros. Com a lucidez que não tendes.

Julho 2020

Nuno Morna



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