"Um fraco Rei faz fraca a forte gente"
Luiz Vaz de Camões
O problema nunca foi a falta de homens, porque sempre os
houve. De ombros largos e mãos calejadas, de rostos gastos pelo sal e pelo sol,
de passos que souberam desbravar o desconhecido e erguer muralhas contra o
medo. O problema, esse, sempre foi outro. E Camões percebeu-o antes de todos.
Com o seu jeito de ver sem precisar de dois olhos, notou o que os outros
fingiam não notar: este país, que se iludia com as sombras das glórias antigas,
já então cambaleava sobre o peso da sua própria decadência.
Portugal construiu-se sobre uma elite. Uma elite de aço e
audácia, de marinheiros que preferiam o abismo à estagnação, de guerreiros que
achavam a terra mãe uma limitação, de aventureiros que viam na ausência de
caminho a possibilidade de um. Mas essa elite desapareceu. Foi esmagada nos
campos de Alcácer Quibir, dissolvida nos corredores húmidos da corte, enterrada
sob o peso dos sonhos doentios de um rei que nunca voltou. E, sem elite, o que
resta? A intriga, o compadrio, a aversão à mudança. Um rei fraco, ou um
governo, se quisermos vestir a ideia com as roupas do presente, não se limita a
deixar de resolver problemas: multiplica-os. O medo entranha-se. A hesitação
propaga-se como um veneno lento. A coragem morre antes mesmo de nascer.
D. Fernando, por exemplo. O rei errático, hesitante,
tropeçando nos próprios passos, enredado em guerras sem norte e sem nexo.
Perdeu exércitos, perdeu dinheiro, perdeu o fio à meada até se ver forçado a
assinar um papel onde estava escrita a sua fraqueza, o Tratado de Salvaterra de
Magos, onde o destino do país era entregue de bandeja a Castela. E depois?
Depois, nada. O povo ficou ali, parado, órfão de direcção, como sempre fica
quando quem manda não sabe mandar. Foi preciso um golpe, uma revolta, um sobressalto
inesperado para que o país não desaparecesse numa linha de tratado e num
punhado de assinaturas.
O mesmo com D. Sebastião. Convenceram o rapaz de que era uma
personagem de epopeia, embalaram-no com palavras sobre cruzadas e imortalidade,
atiraram-no para o deserto como se a realidade fosse uma ideia menor. E ele
acreditou. Foi. Partiu para Marrocos sem exército suficiente, sem estratégia,
sem sequer um plano para regressar. Foi esmagado. O rei morreu, a nobreza
morreu, os soldados morreram. O povo, outra vez órfão. Castela entrou em Lisboa
sem resistência, porque resistência não havia. Não que o país tivesse esquecido
como lutar, mas porque aqueles que deviam protegê-lo não souberam como.
E assim seguimos. Conseguimos sempre seguir. Os séculos XIX
e XX, um vaivém de caos e guerras civis, os liberais a pegarem nas rédeas, a
República a prometer um futuro que nunca chegou. Mas as promessas esfumam-se
depressa quando as elites continuam medíocres. Golpes atrás de golpes, governos
que duravam menos que uma estação do ano, um parlamento entretido a discutir
ninharias enquanto o país se afundava. O resultado? A sombra inevitável de um
quartel-general, botas a baterem no chão, um golpe militar que transformou o
país numa sala escura por quarenta anos. E depois, depois prometeram mudança
outra vez.
Mas mudou? Pouco. A democracia instalou-se, os vícios
ficaram. Aprendeu-se a disfarçar a incompetência com discursos, a falta de
convicção com promessas, a estagnação com números martelados em estatísticas
que ninguém entende. E o país, como sempre, feito de gente disposta, de
burgueses que arriscam, de trabalhadores que suam, de empresários que tentam.
Mas um país também feito de um Estado que os sufoca, que os empurra para a
beira do abismo e diz-lhes para não olharem para baixo.
Camões sabia. Camões sempre soube. O povo não é fraco por
natureza. O povo torna-se fraco quando os seus líderes são fracos. E foi isso
que sempre tivemos, reis fracos, ministros fracos, presidentes fracos. Quando a
liderança falha, o país adormece à espera de ser acordado por um sobressalto
qualquer. Fica à espera de um novo D. João IV, de um novo Marquês de Pombal, de
um novo Sebastião que nunca virá.
Porque um país não se governa sozinho. Precisa de mão firme,
de quem saiba para onde vai, de quem tenha coragem para governar sem pedir
licença ao medo. Sem isso, resta somente a resignação. E um país fraco. Como
sempre foi. Como sempre será.
Novembro 2024
Nuno Morna

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