A Fina Flor do Entulho
A fina flor do entulho, essa gente que paira sobre nós como uma nuvem de mosquitos num charco, convencida de que exala perfume quando, na verdade, tresanda. Conhecem-nos bem. Andam por aí, de peito inchado, de verbo fácil, de importância auto-infligida, julgando-se príncipes de um império que existe apenas nas suas cabeças.
E como falam. Falam sem parar. Falam de si próprios, dos seus feitos, dos seus projectos, das suas conquistas imaginárias. Falam como quem nos faz um favor, como quem nos dá a honra de os ouvirmos, como se as suas palavras fossem fragmentos de um evangelho inédito que a humanidade, ingrata e desatenta, ainda não soube venerar como devia. A cada frase, um suspiro. A cada pausa, um olhar teatral. São os artistas do vazio, os virtuosos do nada, os acrobatas de uma corda inexistente suspensa sobre um abismo que não chega a ser sequer um buraco.
E, no entanto, acreditam. Deus sabe que acreditam. Acreditam que são especiais, que são diferentes, que são mais do que os outros. Acreditam que o mundo os deve reconhecer, aplaudir, recompensar. Que o mundo lhes deve, ponto. Porque sim. Porque respiram. Porque acordam de manhã e se olham ao espelho e veem um génio, um mestre, um qualquer Napoleão de pacotilha, sem perceberem que a única batalha que alguma vez venceram foi contra a própria vergonha, e isso já foi há muito tempo.
E há títulos, claro. Sempre há títulos. “Consultor”, “especialista”, “mentor”, “visionário”, “influencer”, como se a mera junção de palavras lhes conferisse substância, como se o facto de se nomearem os transformasse em algo mais do que o monte de cacos que, no fundo, sempre foram. São os condes da treta, os duques da vacuidade, os reis depostos de um reino que nunca existiu.
O ponto alto do dia, claro, é a inevitável selfie ao espelho. Sempre ao espelho. Como se o reflexo lhes devolvesse a confirmação divina da sua própria magnificência. Ali estão, de telemóvel em punho, olhar entre o melancólico e o pretensamente profundo, pose estudada, lábios ligeiramente contraídos num esgar de falsa introspecção, como quem murmura orgulhosamente “Meu Deus, porque me fizeste assim?”. E o espelho, coitado, incapaz de responder, de lhes dizer a verdade, de os sacudir pelos ombros e sussurrar-lhes ao ouvido: “Aproveita antes a oportunidade e pergunta ‘Espelho meu, espelho meu… existe alguém mais patético do que eu?’”. Mas o espelho não fala. Limita-se a devolver-lhes a imagem que querem ver, cúmplice silencioso da fraude quotidiana em que vivem, sem nunca lhes estilhaçar a ilusão e responder: "não!"
E, no fim, quando a noite cai e os “flashes” se apagam, quando os aplausos gravados em fita magnética deixam de tocar, quando as luzes dos eventos onde entraram sem convite se extinguem e voltam para casa, sentam-se à mesa, diante do prato requentado da sua própria insignificância, mastigam devagar o macarrão insípido da sua própria irrelevância e engolem, sem pressa, o único legado que alguma vez deixarão: um rasto de palavras vazias e o eco distante do seu próprio sorriso forçado.
Setembro 2024
Nuno Morna

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