Crónica de uma Vitória Anunciada num Lugar sem Memória.
Gustave Le Bon escreveu um livro há mais de um século, um
livro pequeno e frio e exacto como um bisturi de hospital militar. Esse livro
chama-se “Psicologia das Massas”. Não é um livro para se ler por distracção, ou
porque se gosta de política, ou porque se acha que vai mudar alguma coisa
depois de o ler. É um livro para quem já percebeu não haver salvação. Para quem
se senta à noite no escuro a ouvir os ruídos da madeira a estalar e sabe que
não é o vento. Que somos nós. A estalar.
Na Madeira, mais uma vez, houve eleições. E mais uma vez
ganhou o mesmo. O mesmo homem. A mesma voz. A mesma maquinaria velha que já nem
faz barulho porque está demasiado oleada com o hábito, com o medo, com o cheiro
da terra húmida depois da chuva e da desesperança que se entranha como bolor
nos tectos das casas que nos ensinaram a amar como se não houvesse mais mundo
para além da ilha. A massa, dizia Le Bon, não pensa. A massa obedece. A massa
vota como quem reza. Como quem pede desculpa. Como quem agradece por ainda
estar vivo.
Vi gente aplaudir. Gente que conheço. Gente que vi crescer.
Gente que depende do emprego com medo, e que agora sorri nas filas das
repartições com aquele sorriso que já não é sorriso, é uma espécie de máscara
para não chorar. Vi-os a votar como quem escreve uma carta para ninguém, porque
sabem que ninguém vai ler, mas escrevem na mesma porque não sabem fazer outra
coisa. A massa não lê programas. A massa não sabe. A massa sente. A massa
precisa de um dono.
E Albuquerque é isso. Um dono. Um velho que já não
morde, mas que ainda assusta. Finge que acredita, que confia, que espera.
Mas ninguém acredita. Ninguém confia. Ninguém espera. O que há é este silêncio
de hospital depois da visita do médico. O médico que diz que está tudo bem. E
nós sabemos que não está, mas calamos. E assinamos os papéis. E voltamos para
casa a pensar no jantar.
A política na Madeira não é política. É um cansaço. Uma
sucessão de domingos iguais, com pessoas iguais a prometerem coisas iguais. O
PS morreu de uma morte sem sangue, daquelas que se morre por dentro. O JPP
aprendeu a fingir que é novo, mas usa as mesmas palavras, o mesmo vocabulário
gasto de feira de domingo. Os outros partidos vivem na sombra, à espera de que
alguém os veja, mas ninguém vê. Ninguém quer ver. Ninguém tem força para ver.
Porque isto, esta coisa que acontece ocasionalmente, e a que
chamam eleições, não é escolha. É sobrevivência. É votar em quem arranjou o
estágio, a casa, o subsídio. Em quem não conhecemos. Em quem nos conhece. Em
quem pode. Vota-se com o estômago. Com o medo. Com a gratidão. Não há voto
livre numa terra onde todas as pessoas devem qualquer coisa a alguém. E o que
se deve, não se esquece. Nunca. Está escrito nas cadernetas do poder como
estavam os nomes dos mortos nos livros da necrologia de uma igreja.
Le Bon sabia tudo. Escreveu que a massa precisa de mitos. E
aqui, os mitos vestem fato escuro e falam com sotaque de quem manda. A massa
quer o pai. Quer o chefe. Quer o pastor. Mesmo que saiba que ele está cansado,
que mente, que não sabe o caminho. A massa vai atrás. Sempre. Porque ir atrás
cansa menos do que ir à frente. E aqui, nesta ilha, onde tudo é perto e longe
ao mesmo tempo, onde o mar cerca e consola, a vontade de mudar é menor do que o
medo de se perder.
É esse o segredo. Ninguém quer mudar. Querem é que as coisas
não piorem. Querem manter o pouco que têm. Querem que os filhos tenham o mesmo
que eles, ou nem isso. A política não é ambição. É contenção. É contenção de
danos. É contenção de lágrimas.
Le Bon escreveu para os que já não acreditam. Para os que
sabem que o povo não escolhe. Que o povo, quando vota, responde a um chamamento
mais antigo do que a razão. Está a proteger-se. A defender a sua dor. A negar a
sua vergonha. A esconder-se. E a Madeira, esta terra linda e triste, continua a
esconder-se. De si mesma. Com bandeiras. Com foguetes. Com palavras que não dizem
nada. E a aplaudir o espectáculo, com as mãos doridas de tanto bater palmas a
quem já nem disfarça que governa por instinto. Por sobrevivência. Por vício.
Psicologia das Massas não é para resolver nada. É para
aceitar. É para perceber que, às vezes, o melhor que conseguimos é olhar para o
espelho e dizer: “Sim. É isto. E vai continuar a ser.” Porque mudar dói. Pensar
dói. E nesta terra onde tudo foi sempre difícil, ninguém quer mais dor.
Por isso voltamos. Sempre. Como cães. Como filhos ingratos.
Como gente cansada. E votamos. E aplaudimos. E fingimos que escolhemos. Mas com
a certeza de que já nem fingimos bem.
Março 2025
Nuno Morna
Muito bom!
ResponderEliminarTenho esse livro, com um título diferente "Psicologia das multidões" (uma edição de bolso) e, de quando em vez, lá vou eu consultá-lo.
ResponderEliminarMuito bem!
AL
Obrigado, meus caros, pelos comentários.
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