[partilho parte da crónica de hoje no DN Madeira]
A cidade empoleirada nas encostas, os telhados
escorrendo para o mar como uma enxurrada de telhas suadas, as estradas
enroladas sobre si mesmas, a fome de espaço a crescer dentro dos prédios,
dentro das casas, dentro dos corpos. E, começada a campanha, essa maquinaria de
promessas empilhadas como tijolos húmidos, anuncia-se que sim, que se há falta
de habitação, que basta construir para cima, como se os problemas pudessem
evaporar-se com a altitude, como se empilhar andares fosse o mesmo que empilhar
soluções. E depois vêm os discursos, as ideias - porque todos têm ideias mesmo
que não façam ideia, os desenhos coloridos, e ninguém diz que as fundações não
seguram, que o solo é traiçoeiro, que os prédios de quinze andares não se
equilibram em ribeiras como se fossem garrafas de cerveja pousadas numa mesa
inclinada.
A Madeira, coitada, sobrecarregada como uma mula,
arqueia-se sob o peso das ideias fáceis. As infraestruturas, coitadas também,
mastigam os esgotos e os fios eléctricos até cuspirem apagões, rompimentos,
avarias. O trânsito já não flui, coça-se irritado nos cruzamentos, estanca,
prende-se nas rótulas como um osso atravessado na garganta. O estacionamento?
Uma piada. Casas sem garagens, ruas sem espaços, carros engavetados em becos
como sardinhas em lata. E os prédios altos, altíssimos, a requererem garagens
profundas e impossíveis, a cuspir gente para a rua, para a paragem de
autocarro, para o supermercado apinhado, a atirar sombras enormes sobre as
janelas, sobre os quintais, sobre os velhos que espreitam as vielas da cidade.
O custo da habitação não desce, não pode descer, porque
construir para cima não é mais barato do que construir para os lados, porque os
elevadores custam dinheiro, porque o betão precisa de ser reforçado, porque a
humidade das ilhas entra nas paredes como dedos de velhas a beliscar as juntas.
E depois há os condomínios, os vizinhos, as reuniões onde ninguém quer pagar a
manutenção, as infiltrações que descem dos andares de cima como chuva lenta, as
portas emperradas, os gritos no elevador avariado. E a vista, essa ilusão,
porque quem mora lá em cima vê menos do que quem mora cá em baixo: menos gente,
menos ruas, menos cidade, só um pedaço de horizonte a dissolver-se em neblina.
E, no fundo, lá no fundo, sabemos que o problema não é a
falta de espaço, mas a falta de inteligência, de vontade, de soluções que não
passem por empilhar gente em torres como fichas de casino. Há terrenos vazios,
casas velhas a desfazerem-se em poeira, bairros onde se podia construir sem
violentar a paisagem, sem criar guetos verticais, sem transformar a ilha num
presépio desequilibrado. Mas a decisão nunca é essa, nunca é a que faz sentido,
porque fazer sentido dá trabalho, porque planear exige tempo, porque apostar
num urbanismo sustentável não dá inaugurações nem manchetes, nem fotografias de
políticos sorridentes com capacetes de engenheiro.
E então há quem queira que os prédios vão subindo,
pesando sobre a Madeira, as janelas empilhadas como olhos cansados, os
corredores cheios de ecos, as varandas estreitas onde o vento uiva entre os
estendais. Cá em baixo, a ilha resiste, as estradas torcem-se, as casas
pequenas espreitam de lado como cães desconfiados. Mas há quem continue a
anunciar que sim, que a solução é crescer para cima, e nós imaginamos os
prédios novos como quem olha para um parente doente, sabendo, porque pensamos
mais do que achamos, que dentro de pouco tempo estará a estalar pelas costuras,
a descascar-se em problemas, a gemer com as dores de um crescimento desastrado.
E quem é que ganha com isto? Não é quem precisa de casa,
não é quem paga rendas que engolem o ordenado antes do fim do mês, não é quem
atravessa a cidade todas as manhãs num carro velho a rezar para que o trânsito
ande. Quem ganha são os de sempre, os senhores do betão, os donos das gruas, os
que apertam a mão dos políticos em jantares discretos e combinam os metros
quadrados como quem escolhe pratos num menu. Cada prédio novo é mais um
presente embrulhado para o lobby do imobiliário, mais um bilhete comprado na
lotaria dos preços, mais uma oportunidade para vender vistas de mar que se
evaporam na névoa da dívida, na humidade das prestações a sufocar os
inquilinos. E a empáfia de quem assim acha, sempre prestável, sempre solícito,
inclina-se, sorri, facilita, apressa, trata do resto como um mordomo bem
treinado, enquanto nos vendem esta história de que construir para cima resolve
tudo, de que quanto mais altos os prédios, mais acessíveis as casas, como se a
gravidade funcionasse ao contrário, como se a especulação descesse com os
andares em vez de subir com eles.
E onde é que os querem enfiar? Onde é que ainda há espaço
para espetar prédios sem desfigurar o que já está desfigurado, sem abrir mais
feridas nesta ilha esburacada por túneis, esventrada por rotundas, coberta de
cimento como se a terra fosse um erro a ser corrigido? Na beira das ribeiras,
que já desabam sozinhas sempre que chove mais do que três dias seguidos? Nas
encostas, onde o peso dos andares vai empurrando a terra devagarinho até um dia
a cidade acordar e dar por si a escorregar para o mar? No centro do Funchal,
onde já não cabe um palmo de sombra sem pagar estacionamento? Em bairros
periféricos, empilhando gente num urbanismo de laboratório que só agrava a
desigualdade e a degradação? Na Madeira, não há espaço para crescer para cima
sem sacrificar o pouco que resta de harmonioso, sem transformar ainda mais a
ilha num retalho de prédios sem alma, sem história, sem lógica. Já se mataram
os vales com betão, já se fecharam os horizontes com edifícios que parecem
arquivos de seres humanos, já se impediu a ilha de respirar, e agora querem
entupir o que ainda sobrevive, como se empilhar betão fosse um remédio para a
incompetência de quem governa.
Já chega! Já chega de disparates, de urbanismo de
improviso, de ideias feitas a régua e esquadro numa geometria oca e sem
sentido. Já chega de gente na política a brincar à habitação como quem joga
SimCity sem ler o manual. Já chega de promessas ocas embrulhadas em palavras
caras, de soluções que não solucionam, de projectos que só servem para
alimentar os de sempre, os do costume, os que estão sentados à mesa enquanto o
resto da Região come migalhas. A Madeira não precisa de crescer para cima,
precisa de crescer para a frente, com inteligência, com respeito, com um
planeamento que não transforme a paisagem num amontoado de torres desajeitadas.
O que falta não é betão, o que falta é coragem para fazer diferente, para parar
este ciclo de desastre mascarado de progresso, para dizer de uma vez por todas
que a solução para a habitação não é empilhar problemas em andares cada vez
mais altos.
Março 2025
Nuno Morna
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