Estabilidade? Alguém conhece maior estabilidade do que a que existe numa ditadura?

 [in crónica Rede Social, DN Madeira]


Na Madeira não se governa, persiste-se. E o que persiste na Madeira não é o governo, é o ritual, uma opereta com cenários de cartão, actores de voz monocórdica e público a bocejar discretamente atrás das máscaras. Dizem-me estabilidade e eu vejo uma senhora idosa, numa enfermaria, a apagar lentamente, os olhos voltados para o tecto, o soro a pingar-lhe gota a gota a inutilidade dos dias. Estabilidade. O que é isso senão o prolongamento meticuloso da agonia? Que ideia é esta que nos venderam de que o não-movimento é virtude, de que a repetição é segurança, de que o que não muda é, por isso mesmo, bom?

Na Madeira, onde os presidentes regionais se sucedem como árvores da mesma raiz, as folhas caem, os troncos mantêm-se, as raízes aprofundam-se, apodrecendo lentamente a terra, a estabilidade não é mais do que o nome novo da paralisia. Não há verdadeira política, há continuação. Os mesmos nomes, os mesmos tiques, os mesmos encontros onde se combinam nomeações, os mesmos almoços pagos com dinheiro que não existe, mas que se arranja, sempre se arranja, desde que se saiba a quem telefonar.

As eleições passaram, e com elas o fingimento de que algo poderia mudar. Aquele momento breve em que se permite ao povo a ilusão de que a sua escolha tem consequências. O povo, coitado. Vai votar como quem assina uma folha de presença na repartição: por dever, por tédio, por medo de ser notado pela ausência, receoso de que mude alguma coisa. E vota sempre nos mesmos, como quem repete um medicamento que nunca curou, mas também não matou. O PSD, claro. E o CDS, esse fósforo apagado que se conserva na caixa por superstição. Uma maioria quase absoluta, disseram. Como se quase fosse diferente de absoluto. Como se um mandato a mais ou a menos alterasse o que quer que fosse num sistema onde tudo se decide antes, muito antes, nos bastidores onde os cargos se distribuem como heranças entre primos de confiança.

E então anunciam: haverá governo. Haverá coligação. Haverá orçamento. Haverá estabilidade. Como se isso fosse uma dádiva. Como se isso fosse o prémio. Como se isso fosse, sequer, desejável. Mas a estabilidade, aqui, é a forma mais insidiosa de dominação. É o conforto em que o medo se esconde, é a brandura do jugo quando este já não dói porque deixou de ser notado. Ninguém levanta a voz porque não há para onde levantar a voz. Não há imprensa livre, há jornais dependentes do subsídio. Não há oposição, há rivais domesticados que esperam a sua vez na fila. Não há debate, há conferências de imprensa. Não há política, há gestão. Gestão do poder, gestão das aparências, gestão dos silêncios.

Lembro-me de um parente no hospital a olhar para a parede. A enfermeira entrava, mudava-lhe o cateter, e ele dizia “obrigado” com uma voz que já não sabia se era dele. Assim é a Madeira. Um doente terminal agradecido pela troca da fralda. Não exige mais porque desaprendeu a exigir. Porque foi ensinado, durante décadas, a não esperar. Porque lhe disseram que tudo o que passa da sobrevivência é luxo, e que o luxo é pecado, e que o pecado se paga com o ostracismo. E então aceita. Aceita a estabilidade como quem aceita a dor crónica: um fundo constante que já nem se distingue da vida.

O orçamento, esse, será aprovado. Claro que será aprovado. Como sempre é. Com os votos de sempre, com os discursos de sempre, com as promessas de sempre. Haverá milhões para obras. Haverá planos para o turismo. Haverá medidas para os jovens que ninguém lê, porque os jovens ou emigraram, ou desistiram de esperar por algo. Haverá, nós cargos, sobretudo nomes, os de sempre mesmo que de cara diferente. Secretários, directores, assessores, todos circulando como o sangue viscoso de um corpo cansado que se recusa a morrer por inércia, por hábito, por falta de alternativa.

E, no entanto, sob essa crosta de normalidade, há um silêncio pesado. Há famílias inteiras que vivem do Estado e outras que vivem apesar dele. Há pequenas empresas que não concorrem porque sabem que é escusado. Há jornalistas que escrevem sabendo que a verdade é um luxo que o subsídio não paga. Há cidadãos que aprenderam a não perguntar. Há escolas com computadores que não ligam, há hospitais com médicos cansados, há tribunais onde a justiça se esconde entre papéis que ninguém lê.
Estabilidade. O cemitério também é estável. As sepulturas mantêm-se no mesmo sítio, alinhadas, ordeiras, previsíveis. E há flores, sim, flores que se renovam, flores que se compram no caminho, flores que disfarçam a decomposição. Como o orçamento, como a coligação, como os discursos que se farão nos próximos dias. Tudo flores sobre a morte. Tudo aparência sobre o vazio.

Eu não quero estabilidade. Quero vida. Quero que o poder mude de mãos, que o medo mude de dono, que a juventude volte a acreditar que a política serve para alguma coisa. Quero que os orçamentos sejam discutidos a sério, que os jornalistas sejam incómodos, que os juízes não tenham de olhar para cima antes de decidir. Quero que a Madeira respire.

Mas por agora, não. Por agora, sorri-se. Diz-se que está tudo bem. Que há estabilidade. E os que governam continuam a governar. E os que se calam continuam a calar-se. E os que sonhavam deixaram de sonhar.

E eu, neste fim de texto, neste sol que queima o mar como se o mar pudesse arder, apenas digo isto: o que há não é estabilidade. É medo. É conformismo. É a recusa da mudança porque a mudança, essa, não se controla. E talvez seja isso que mais assusta os que mandam. A ideia, apenas a ideia, de que um dia alguém possa dizer: basta.

Mas esse dia, na Madeira, ainda não chegou. E até lá, a estabilidade continuará a ser o nome novo da desistência.

Março 2025
Nuno Morna



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