Hamlet e a Corrupção

A actualidade de Shakespeare não é um assunto, é um silêncio de pombos no Largo do Colégio às seis da tarde. Anda por aí, nos olhos das pessoas, nos gestos que se fazem sem saber porquê, no intervalo entre um elevador que se fecha e outro que se abre. Nunca ninguém viu Shakespeare a descer a Calçada da Encarnação, mas ele está lá, a esconder-se nos bolsos dos que passam, na tosse de um velho encostado a um muro, nos sapatos sujos de um puto que chuta uma lata enquanto caminha para a escola.

A tragédia é um par de mãos que se largam sem querer. A comédia é uma mulher que ri sozinha na paragem do autocarro, talvez a lembrar-se de um amor antigo ou do tempo em que o pai a levava ao Jardim Municipal para ver os patos.

Shakespeare não morreu. Apenas trocou Stratford-upon-Avon por um café barato no Almirante Reis. Observa os casais que discutem em silêncio, a senhora gorda que arruma os sacos do supermercado, o tipo de fato escuro que lê as mensagens no telemóvel sem realmente as ler. Pega num guardanapo, escreve qualquer coisa – talvez um solilóquio, talvez a lista de compras – e depois perde-se na cidade, como todos os que passam, sem saberem que, ao virar da esquina, podem encontrar-se com Hamlet a perguntar-lhes para onde vão.

Isto porque a Dinamarca apodrece. Uma podridão lenta, uma coisa viscosa e silenciosa que se infiltra nos corredores do castelo, sobe as escadas, esconde-se nos cortinados, impregna o ar com um cheiro de carne morta e veludo bolorento. Primeiro não se nota. Depois começa-se a perceber nos gestos, o modo como os que mandam evitam olhar uns para os outros, como os cortesãos sorriem demasiado, como as criadas apertam os aventais sujos de suor e medo. Há um rumor de doença, uma febre que não se vê, uma espécie de frio colado às paredes do palácio onde, se encostarmos o ouvido, ouvimos a respiração baça da traição.

O rei morreu. Mataram-no, sim, mas de um modo tão limpo, tão exacto, que por um instante se confundiu a sua morte com uma sucessão natural das coisas. O tempo passou, o tempo passa sempre, e quando deram por isso Cláudio já estava no trono e Gertrudes já era sua mulher e a Dinamarca já tinha um novo rei, um novo equilíbrio, uma nova ilusão de normalidade. Os soldados mudaram de turno, os conselheiros dobraram-se perante o poder como se sempre ali estivesse estado aquele poder, como se nunca tivesse havido outro antes dele. Mas Hamlet sabe. E, porque sabe, enlouquece.

A loucura dele é outra podridão, diferente da de Cláudio, diferente da do reino. Não é um veneno no ouvido, não é um golpe de espada. É uma coisa que o vai apodrecendo de dentro para fora, que lhe devora as noites, que se lhe instala no corpo e o enche de sombras. Finge que enlouquece, mas a farsa torna-se real, porque a sanidade e a loucura são como dois quartos do mesmo castelo, e basta abrir uma porta para nunca mais encontrar o caminho de volta. Há um cheiro intenso nos corredores, um cheiro a mofo, a velhas intrigas, a perfumes baratos misturados com sangue. Gertrudes veste-se demasiado bem, Cláudio fala demasiado baixo, Polónio ri-se demasiado alto. Tudo é excessivo e, ao mesmo tempo, tudo é exactamente como tem de ser.

No meio de tudo isto, Ofélia morre. Morre como morrem as mulheres quando o mundo se torna demasiado pesado para os seus ombros magros. Em silêncio, sem resistência, como quem fecha os olhos porque já não suporta a luz. Morre com o corpo a flutuar na água, os cabelos dispersos como algas, as mãos soltas, inúteis, vazias. Hamlet olha para ela e vê o reflexo da própria ruína. A corrupção consome tudo. O amor, o poder, a memória. E quando Hamlet morre, quando Laertes morre, quando Gertrudes morre, quando Cláudio morre, não há redenção nem catarse. Só uma sala cheia de cadáveres e um país que, sem rei nem príncipe, nem ninguém que importe, se entrega, sem resistência, ao primeiro estrangeiro que aparecer.

Porque não há justiça. Nunca houve. Nunca haverá. A podridão instala-se, as pessoas habituam-se, e a história continua, uma página depois da outra, como se tudo fosse apenas um livro velho, esquecido numa prateleira, onde o final se repete sempre, sempre, sempre.

A podridão continua. Ninguém a vê ao princípio, porque a corrupção nunca chega com tambores nem clarins. Instala-se devagar, infiltra-se nas juntas das portas, nos corredores do parlamento, nos contratos assinados de madrugada entre um copo de whisky e um telefonema para um amigo. No início, parece apenas um ligeiro desconforto, uma coisa vaga que se sente nas ruas, no silêncio dos funcionários públicos, na maneira como os jornais evitam certos nomes. Depois, cresce. Multiplica-se. Torna-se a única coisa que existe. A Dinamarca de Shakespeare é o país de hoje, qualquer país, todos os países, um lugar onde os poderosos se sucedem uns aos outros como se fizessem parte de um teatro de fantoches, uma peça onde o enredo já está escrito, onde a morte do rei nunca impede que outro tome o trono, onde os crimes são apenas preâmbulos para os crimes seguintes.

Hamlet, se vivesse agora, não teria ilusões. Passaria os dias a percorrer corredores de secretarias, a tentar entender como tudo começou, onde exactamente aconteceu o primeiro desvio, a primeira traição. Falar-lhe-iam de contratos públicos, de concessões duvidosas, de secretários que entram pobres e saem ricos, de um sistema onde ninguém é verdadeiramente culpado porque a culpa é sempre de todos e, portanto, de ninguém. Ele tentaria fazer justiça, tentaria expor a verdade, mas rapidamente perceberia que a verdade já não importa. Que já ninguém escuta. Que já ninguém quer saber. Como na corte de Elsinore, os jornais publicam desmentidos, os porta-vozes sorriem, os conselheiros continuam a fingir que servem um país que já não lhes pertence.

E há sempre um Polónio, um burocrata esperto e servil, um homem que se inclina na direcção do vento e que sobrevive a todos os regimes porque nunca defendeu nada que não fosse o seu próprio futuro. Há sempre um Cláudio, um tipo que chegou ao poder não porque fosse melhor, não porque tivesse mérito, mas porque soube escolher a altura certa para dar um passo em frente, porque soube esperar pelo momento em que a noite estava suficientemente escura para esconder um cadáver. Há sempre um Laertes, indignado e revoltado, pronto a gritar palavras bonitas sobre moral e decência, até que percebe que a corrupção também tem vantagens e que, afinal, se pode negociar com o diabo desde que o contrato seja bem redigido. E há sempre uma Ofélia, uma figura perdida no meio deste teatro de ambições, alguém que acreditou, por um instante, que o amor ou a lealdade ainda podiam fazer sentido. E que, claro, acaba morta.

O mundo não mudou. A corrupção não é um acidente, é um mecanismo. Um relógio que funciona sem falhas, uma engrenagem que gira sem nunca parar, alimentada pela cobardia, pelo medo, pelo cansaço. Hamlet quis lutar contra isso e morreu. Morrem sempre os Hamlets. Os Cláudios, os Polónios, esses sobrevivem. Mantêm-se no poder, engordam, distribuem favores, asseguram que a máquina continua a funcionar. E no final, quando tudo está consumado, quando já não resta nada senão ruínas e cinzas, aparece sempre um Fortimbrás, um rosto novo, um nome novo, um homem que promete mudança, mas que, na verdade, já pertence à engrenagem desde o princípio. A peça recomeça. Os actores mudam. O palco é o mesmo. O enredo também.

Fevereiro 2025

Nuno Morna



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