Lenine¹ e Gentile²: Sentados à Mesa, a Engolir o Mundo

¹ dirigente comunista russo, orador, teórico que conduziu o país à revolução bolchevique em 1917.

² filósofo que desempenhou um papel significativo na teorização do pensamento político que fundamentou o fascismo na Itália.

Lenine e Giovanni Gentile, sentados à mesa, o mesmo vinho barato nos copos, a mesma pressa de falar antes que o outro terminasse a frase, a mesma impaciência por aqueles que hesitam. Lenine, a cara magra, as mãos nervosas, a calvície a brilhar sob a luz fraca, a boca cheia de palavras como proletariado e revolução, palavras duras, secas, palavras como pedras que se atiram contra um vidro até o estilhaçarem. Gentile, o fato impecável, os óculos ligeiramente tortos, o indicador a bater contra o tampo da mesa, a falar do Estado como um pai que diz ao filho que lhe quer bem, que é para o bem dele, que tudo o que faz é para o bem dele, mesmo que o feche no quarto escuro, mesmo que o obrigue a engolir o remédio amargo, mesmo que lhe aperte o pescoço até deixar de respirar. Lenine queria salvar os pobres, Gentile queria salvar a pátria, e no fim o que fizeram foi criar máquinas de medo, fábricas de silêncio, sistemas onde a política não era escolha, mas inevitabilidade. Um fez-se ditador em nome da classe, o outro em nome da nação, e ambos olharam para os homens que tinham diante de si não como homens, mas como peças de um jogo que se pode perder sem importância.

Lenine e Gentile, dois homens sentados à mesa, cada um com a sua certeza, o seu dogma, o seu destino traçado numa linha recta, uma linha tão segura que se pudesse ser de ferro, fazia-se caminho-de-ferro e avançava sem maquinista, sem passageiros, sem estação de chegada. O primeiro, um bolchevique irremediável, olhos fundos, febre nos ossos, mastigando o proletariado como quem mastiga um osso gasto, um cão magro numa rua suja de São Petersburgo. O segundo, um teórico da nação, cara circunspecta, sempre a ajustar a gravata, a falar do Estado com a solenidade de um padre a dar a extrema-unção a um moribundo que já nem ouve.

O Estado, sempre o Estado, esse fantasma que engole tudo. Lenine queria um Estado provisório, um interlúdio, um degrau para algo maior, mas os degraus que se sobem depressa nunca chegam a lado nenhum, e quando deu por isso o aparelho burocrático era mais pesado que a revolução, e os operários, coitados, ainda estavam de mãos vazias, só que agora não era a burguesia que os roubava, era o partido. Gentile nem fazia questão de fingir: para ele o Estado era o próprio fim, a substância da pátria, o esqueleto onde a carne nacional se pendurava, e por isso tudo era Estado, do pão à escola, do teatro à cama onde se dormia. Nos dois casos, os indivíduos apagavam-se, substituídos por um colectivo que ninguém conseguia ver, como um rebanho que caminha para o matadouro sem perceber que caminha, sem perceber sequer que existe.

Diziam que o futuro era deles, que as democracias liberais eram frágeis, decadentes, condenadas. No entanto, no entanto, os dois fizeram regimes fechados, presos à mesma obsessão, à mesma necessidade de ordem, de unidade, de silêncio. Para Lenine, a classe. Para Gentile, a nação. Mas tanto fazia. O que interessava era o poder, essa coisa que se agarra com as duas mãos e não se larga, essa coisa que se cola aos dedos como gordura rançosa, que deixa as unhas sujas, que se entranha na pele. Um partido único, sempre um partido único, porque não há espaço para dúvidas, para hesitações, para alternativas. O proletariado não sabe o que quer, diz Lenine. O povo precisa de uma voz que o conduza, diz Gentile. E com isso, um fecha as fábricas e fuzila os operários, o outro mete jornalistas na prisão por não amarem o Duce como devem.

O que fizeram à economia não foi muito diferente. Lenine nacionalizou, expropriou, estatizou, arrastou o país pelo gelo da Sibéria até perceber que, afinal, os camponeses precisavam de algum incentivo para não morrerem de fome. Gentile manteve a propriedade privada, mas de tal maneira amordaçada pelo Estado que nem os patrões sabiam bem o que era deles e o que não era. No fundo, o mesmo princípio: a riqueza pertence ao colectivo, seja à classe ou à pátria, e o Estado gere-a como entender. O resultado, o mesmo: filas para o pão, economias emperradas, burocratas a decidir quantos sapatos se deviam fabricar e em que cor. O desastre meticulosamente organizado, como um plano de guerra para uma batalha já perdida.

E no fim, o mesmo terror. A mesma certeza que só se mantém com medo. Lenine corta cabeças, manda prender mencheviques, fecha jornais, exila, fuzila, expulsa. Mussolini faz o que pode para não ficar atrás, persegue, censura, elimina. Um consegue erguer um império de horror que há-de durar décadas. O outro acaba fuzilado numa praça, pendurado pelos pés como um porco abatido. Mas, no fundo, eram irmãos. Dois homens sentados à mesa, um em Moscovo, outro em Roma, cada um a mastigar a sua utopia, a roê-la até ao osso, até não sobrar nada senão fome e cadáveres.

Janeiro 2021

Nuno Morna



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