Marcelo, o Diluente da República
O Presidente da República falou como falam os padres nos funerais, com aquela solenidade mole, o luto a meio da voz, a compaixão de circunstância, como quem abençoa um morto sem acreditar na ressurreição. Mas, por trás das palavras medidas, ficou o essencial: a tragédia não foi do Governo, não foi do país, não foi sequer da política – foi do homem que caiu, do Primeiro-Ministro, e da sombra que a sua queda projecta sobre tudo o resto.
Porque, disse Marcelo, o problema não foi a governação, nem a economia, nem a política no sentido habitual. O problema foi de “confiabilidade ética e moral”, palavras que caíram pesadas como pedra atirada a um charco. O Presidente usou a elegância do costume, mas não há maneira elegante de dizer que um Primeiro-Ministro perdeu a confiança do país. Porque, como Marcelo nos explicou, sem o explicar, não há meio-termo entre confiar e desconfiar. E quando um homem chega a esse ponto, quando se torna ele próprio o problema, já nada lhe pode valer.
A crise – essa coisa imensa, difusa, sempre pairando sobre nós como um tempo encoberto – não começou de repente, mas Marcelo disse que foi “inesperada”. É o que se diz quando já se viu a tempestade formar-se ao longe e, mesmo assim, se finge surpresa quando começa a chover. O Primeiro-Ministro tentou fintá-la com aquele jogo de mãos dos ilusionistas que já não enganam ninguém: primeiro ignorou, depois tentou distrair a plateia, por fim apostou tudo numa moção de confiança que não passou de um número falhado. E, quando a ilusão se desfez, ficou só ele, sozinho no palco, debaixo de uma luz demasiado forte, demasiado branca, a revelar-lhe as rugas, os suores, o desespero.
O Presidente, que sabe o que custa manter o equilíbrio no arame, disse que fez tudo para evitar eleições. Mas que podia ele fazer? Empurrado pelo inevitável, dissolveu o Parlamento e marcou a data do enterro. E, depois, alertou-nos para os perigos que espreitam quando um país entra nesta dança de instabilidade, esta vertigem de ciclos curtos e crises sucessivas, esta política de emoções instantâneas e condenações morais sem remédio. E avisou, com o tom do pai que já se cansou de repetir o mesmo: quando se brinca demasiado com a confiança, acabam por aparecer os que não brincam em serviço.
E assim ficámos, entre a nostalgia de um tempo que já não há e o medo do que vem a seguir. Marcelo fez o elogio fúnebre do Primeiro-Ministro sem nunca o elogiar, e no fim, quando as câmaras se desligaram e as palavras assentaram, o que ficou foi a imagem de um homem que caiu sem perceber que já estava a cair.
Março 2025
Nuno Morna

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