Mestre Gil: Sempre a Mesma Barca
[breve recensão a "Os Autos das Barcas", de Gil Vicente]
No princípio há o rio, largo e preguiçoso, a fingir que tudo passa, a fingir que tudo muda, a fingir que lava as nódoas do tempo, mas não lava nada, nem os escombros das promessas antigas, nem os retratos desbotados dos que governaram e dos que hão de governar, nem os restos de discursos que apodrecem no fundo, como lodo, nem as palavras que nunca significaram coisa nenhuma. O rio leva a barca, a barca leva os homens, e os homens levam os pecados que já não são pecados, só hábitos, só maneiras de estar, só pequenas manhas herdadas de pais para filhos, de patrões para empregados, de ministros para assessores, de reis para presidentes.
No cais, o povo vê. O povo vê sempre, vê há séculos, vê e comenta, vê e ri-se, vê e cala, vê e finge que não vê. Já conhece o enredo, já sabe quem embarca, já sabe quem fica, já sabe que tudo se repete e que o Diabo, no fim, há-de dizer que não tem lugar para tantos. O Diabo cansa-se. O povo cansa-se. Só a barca continua, a mesma madeira carunchosa, os mesmos remos gastos, a mesma vela rasgada pelo vento dos séculos.
A barca parte devagar, rangendo, e o cheiro a peixe podre mistura-se com o fumo das velas, um cheiro espesso, antigo, como o país, como os ossos dos que esperam na margem, como os retratos de família que amarelecem nas cómodas da província, como a cera pisada dos conventos onde as beatas choram pelos pecados dos outros. O rio lambe os cascos como um cão velho e resignado, sabendo que tudo ali se repete, os mesmos nomes, as mesmas caras, as mesmas vozes de feira, a mesma ladainha de promessas rotas e juramentos que não valem nada. Na margem, há quem cuspa para a água, há quem levante os olhos e diga "Vê lá tu esta gente", há quem não diga nada porque é escusado dizer nada. E lá vão eles, fidalgos de barriga inchada, corregedores de fraque engomado, clérigos de olhos vermelhos de vinho, banqueiros de batina nova, uns empurrando os outros, tropeçando nas suas próprias palavras de latim mal soletrado, numa procissão grotesca rumo ao Inferno.
O Diabo espera-os, de braços cruzados, e sorri, porque sabe que aquilo não é castigo, é justiça. Não há tragédia aqui, só a inevitabilidade de um país que se repete como um relógio avariado, sempre a mesma hora, sempre a mesma conversa, sempre os mesmos nomes nas listas dos partidos, sempre as mesmas heranças empoeiradas, sempre os mesmos processos arquivados. O que Gil Vicente viu, o que Gil Vicente escreveu, o que Gil Vicente riu, continua ali, sentado no parlamento, numa mesa de restaurante com três ex-secretários e um director regional, no gabinete onde um advogado ajusta honorários, num beija-mão qualquer, numa condecoração póstuma. São os mesmos, são sempre os mesmos, a mudar de casaco, a mudar de discurso, a mudar de partido se for preciso, porque um barco é um barco e o que importa é estar dentro dele.
Na outra margem, os que ficam olham sem grande esperança. O Parvo Joane coça a cabeça, o Lavrador esfrega as mãos na camisa suja, um operário sem nome cospe para o rio e pensa que aquilo não é com ele, nunca foi, nunca será. Os que embarcam são sempre os mesmos, os que assistem também. A única diferença é que já ninguém acredita que exista uma barca da Glória. Nem anjos, nem trombetas, nem uma luz ao fundo do cais. O que há é um cartaz de campanha desbotado por cima de um muro descascado, um noticiário sem som numa tasca cheia de moscas, uma mulher de pernas abertas encostado a uma esquina, um sem abrigo a dormir no banco do jardim.
Lá dentro, na barca, alguém pergunta "Mas afinal, por que estamos aqui?" e a resposta vem seca, sem paciência, "Porque, sim. Porque está na lei. Porque sempre foi assim". Um fidalgo tenta negociar, um frade oferece um terço gasto, um juiz declara que há um erro processual e que talvez seja possível recorrer. O Diabo escuta, abana a cabeça, ri-se, ri-se muito. "Mas vocês acham que isto funciona como o vosso mundo?", pergunta, e ninguém responde. E mesmo que respondessem, não ia adiantar nada.
A barca afasta-se, o rio engole os remos, e tudo continua exactamente igual. E o país? O país fica. O país espera. O país encosta-se ao tempo e adormece devagar.
Março 2025
Nuno Morna
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