O Fim do Mundo

Cenários pós-globalização

A globalização, apesar das suas imperfeições, foi sobretudo um exercício de aproximação ao outro, um lento e hesitante aprendizado de respeito pela diferença, um processo em que os povos, antes isolados nas suas certezas e nas suas fronteiras, descobriram que havia mais mundo para além do seu pequeno território, que havia línguas que não entendiam, sabores que nunca tinham provado, formas de pensar que desafiaram as suas, e que, afinal, tudo isso não era uma ameaça, mas uma riqueza. Foi um tempo em que se começou a perceber que as diferenças não precisavam de ser superadas, mas sim compreendidas, que o progresso não era a uniformização, mas a coexistência, que o mundo não se tornava mais pobre quando aceitava múltiplas culturas, mas mais vasto, mais denso, mais cheio de possibilidades. Foi, talvez, um momento raro na história em que a humanidade olhou para si própria e, em vez de erguer muros, construiu pontes. Mas se a globalização acabasse hoje, o mundo desfazer-se-ia como um relógio partido, as engrenagens a rodar sem sentido, os ponteiros a marcarem horas que já não existem. De um momento para o outro, as fábricas parariam, as máquinas parariam, os operários parariam, tudo parado como uma fotografia antiga, a poeira a pousar devagar sobre as linhas de montagem vazias, o silêncio instalado onde antes havia um zumbido constante de produção, de consumo, de qualquer coisa parecida com progresso. As pessoas olhariam umas para as outras, esperariam que alguém lhes dissesse o que fazer, mas ninguém saberia. Na China, os armazéns cheios de mercadoria que nunca sairia. Na Europa, os supermercados com prateleiras meio-vazias, os clientes a pegarem em pacotes de arroz como se fossem relíquias, os donos de lojas a subirem os preços, primeiro devagar, depois sem disfarçar. O carro que devia chegar da Alemanha nunca chegaria. O medicamento para a tensão, para a diabetes, para o coração, desapareceria das farmácias. E o medo começaria a nascer, um medo sujo e pegajoso que se espalharia pelos corredores dos bancos, pelas esquinas dos bairros, pelas conversas à mesa, primeiro num sussurro, depois em voz alta, depois aos gritos.

A electricidade falharia, porque o petróleo não viria, porque o gás acabaria, porque a fábrica fecharia. E no Japão, onde não se cultiva nada, o arroz tornar-se-ia mais precioso do que ouro. E na Índia, onde os antibióticos eram embalados aos milhões, os hospitais encher-se-iam de doentes para quem já não haveria cura. O telefone tocaria numa casa em São Paulo, a filha a perguntar como está tudo aí, mãe, e a mãe a responder tudo bem, minha filha, tudo bem, como se as ruas lá fora não estivessem cheias de gente desesperada, como se os mercados não tivessem sido invadidos por ladrões que não querem dinheiro, que querem apenas comida. O governo prometeria resolver, mas ninguém acreditaria. As fronteiras fechar-se-iam. Os aeroportos deixariam de ter aviões a partir, as filas de passageiros transformar-se-iam em filas de refugiados, gente que quereria sair, mas não poderia, que quereria entrar, mas não deixariam. Os políticos apareceriam na televisão a prometer, a acalmar, mas a voz tremer-lhes-ia ligeiramente, e quem visse perceberia, perceberia sempre. As empresas cairiam umas sobre as outras, como prédios demolidos por dentro. E um homem em Berlim fecharia a porta da padaria onde trabalhou cinquenta anos porque já não haveria farinha, já não haveria fermento, já não haveria nada para vender.

O crime cresceria, cresceria nos becos, nas praças, nas filas para o pão. O mercado negro instalar-se-ia nos antigos cafés, nas garagens fechadas, nos armazéns vazios. Haveria gente a pagar fortunas por um simples frasco de insulina. Haveria quem matasse por um frango. E haveria os outros, os que se fechariam em casa, os que trancariam as portas, os que sussurrariam aos filhos para não abrirem a janela, para não responderem ao telefone, para ficarem quietos, porque já ninguém estaria seguro.

Passariam meses. Passariam anos. O mundo mudaria, endureceria, encolheria. Os países tornar-se-iam ilhas. Os vizinhos transformar-se-iam em estranhos. As tecnologias envelheceriam e ninguém saberia repará-las. Os telemóveis tornar-se-iam inúteis, os computadores tornar-se-iam inúteis, tudo se tornaria inútil. E os velhos recordariam o tempo em que se podia viajar, em que se comprava fruta do Brasil, roupa da Itália, vinho da França. Contariam essas histórias aos netos que não as compreenderiam, que viveriam num mundo menor, mais pobre, mais escuro. E a esperança, essa coisa leve e invisível que nos mantinha a todos à tona, essa esperança desaparecer-se-ia devagar, como a luz no final da tarde, como o barulho dos aviões no céu.

Março 2025

Nuno Morna

#OFimDoMundo 
#ColapsoGlobal #PósGlobalização




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