O Perigo de Brincar com Malucos
O homem sentado à minha frente na pastelaria, um homem de cabelo ralo e olhos pequenos, mexe a chávena devagar, um gesto meticuloso, quase cirúrgico, como se a colher fosse uma agulha e ele estivesse a fechar um corte na tarde. Há um momento em que ergue os olhos e fita-me, um olhar vago, desfocado, como se me não visse, e nesse instante percebo que ele sabe exactamente o que sei: que os malucos dos outros são sempre mais perigosos do que os nossos, que os radicais deles são sempre um bando de bárbaros enquanto os nossos, coitados, são apenas gente indignada, gente que quer um país melhor, gente que, no fundo, só quer ser ouvida. Ele baixa os olhos, volta à chávena, e eu penso que talvez esteja a tentar lembrar-se de quando começou este engano, esta mania absurda de acreditar que a loucura, desde que seja do nosso lado, é uma loucura boa, uma loucura útil, uma loucura, se calhar, necessária.
A meu avô, que fumava Santa Maria, dizia-me que toda a gente tem os seus malucos, o problema é quando os deixam sair à rua. Contava-me que na aldeia, em miúdo, havia um homem que achava que a rainha de Inglaterra mandava-lhe cartas de amor, um homem que desenhava bandeiras no chão e falava com um pombo que dizia ser o embaixador do Vaticano. Toda a gente achava graça, era inofensivo, um pobre diabo que ninguém levava a sério. Mas um dia, quando os políticos descobriram que havia votos na maluquice, começaram a tratá-lo como um profeta. Deixaram-no subir a um banco do jardim para discursar, depois deram-lhe um pequeno gabinete na Câmara, um orçamento, dois assessores, e quando deram por ela, o homem estava no governo e proibiu os pombos. Era perigoso, dizia, nunca se sabe o que podem tramar, e os outros, os que tinham achado graça ao princípio, os que tinham dito “deixem-no falar, não faz mal a ninguém”, esses, de repente, descobriram que era tarde demais.
É assim que as coisas acontecem. Um dia estás a rir-te do maluco ao teu lado, no outro estás a justificar-lhe os disparates, no outro já não podes dizer nada contra ele porque, entretanto, cresceu, tem poder, tem seguidores, tem uma multidão atrás dele pronta a esmagar-te se não gritares os mesmos slogans. E depois o que fazes? O que dizes quando te batem à porta e perguntam-te “de que lado estás?” e percebes que já não há saída, que já não há lado certo, que só há um corredor estreito onde a verdade se foi encolhendo até caber num bolso de casaco, esquecida num canto, entre uma nota amarrotada e um bilhete de eléctrico?
O homem do café acaba o seu chino, levanta-se devagar, ajeita o casaco e sai, deixando na mesa uma moeda de dois euros. Eu fico ali sentado, a olhar para a colher na chávena vazia, e penso que talvez o meu avô tivesse razão, que o problema não é haver malucos, o problema é deixá-los acreditar que são donos da razão.
Março 2025
Nuno Morna

ora pois....
ResponderEliminarExcelente!
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