O Regresso do Sidonismo
Li com toda a atenção o artigo do Expresso assinado pelo Almirante, li cada linha, cada palavra, e à medida que avançava no texto imaginava-o de pé, direito como uma espada marcial, a farda já trocada pelo fato, mas ainda com aquele ar de comando, aquele olhar de quem está habituado a que lhe obedeçam sem perguntas. Falava do Presidente, da República, do Governo, das promessas por cumprir, da necessidade de ordem, de firmeza, de uma mão que guie o país sem hesitações, como se governar fosse navegar um submarino pelo mar alto, como se um Parlamento fosse uma fragata disciplinada onde ninguém questiona a rota. E eu lia e pensava: já vi isto antes, já ouvi isto antes, esta impaciência com os partidos, este desdém pelos políticos, esta ilusão de que um homem forte pode salvar um país.
O almirante, que foi herói de telejornal, com aquela farda branca imaculada, a barba bem aparada, os olhos de aço a perfurarem os repórteres como quem perfura um casco; o almirante, que andou de um lado para o outro a vacinar o país, a vacinar os velhos, as grávidas, as crianças, os gordos, os magros, os que tinham medo e os que fingiam não ter; o almirante, que agora, desarmado de seringas e de planos de contingência, se descobre político, ou pelo menos convencido de que a política precisa dele, que se deve moldar à sua ideia de comando, como um navio que obedece ao leme, decidiu que Portugal precisa de um Presidente que dissolva Parlamentos, que ponha ordem no caos, que execute sem hesitação aquilo que os políticos, esses seres difusos de gravata frouxa e promessas por cumprir, são incapazes de fazer.
E eu vejo-o, vejo-o de pé no palácio de Belém, encostado a uma balaustrada a olhar para o rio, com os olhos fixos em coisa nenhuma, e penso: mas que ideia é esta? Que novo Sidónio se julga este homem, que acha que a democracia se governa como um quartel, que acredita que a Pátria lhe deve mais um acto de heroísmo, um último golpe de asa? Desde quando é que um país se resolve à força de dissoluções e de imposições? Desde quando é que a política se rege pela ordem de comando? Mas não, ele não quer saber. Ele fala de promessas, de Governos que se desviam, de cidadãos que são enganados, como se a vida política fosse uma coisa mecânica, uma linha recta onde os desmandos se corrigem com um puxão de colarinho, com um estalar de dedos.
A democracia não funciona assim, nunca funcionou assim. Mas o almirante não quer saber. Ele gosta da ideia de um Presidente forte, de um homem que se ergue acima dos partidos, dos debates, das disputas mesquinhas. Ele quer um Presidente que decide. E eu pergunto-me: desde quando é que um Presidente decide? Desde quando é que um Presidente interfere? Mas há sempre quem goste destas coisas, desta nostalgia de um tempo onde o chefe dava as ordens e os outros obedeciam, onde não havia dúvidas, apenas a firmeza de uma voz que ressoava pelos corredores do poder, incontestável, definitiva. O problema é que, quando entregamos o destino de um país a uma só voz, o país afunda-se com ela.
E penso em Sidónio Pais, no seu ar grave, na sua farda bem engomada, na multidão que o venerava, que lhe chamava Presidente-Rei, o homem que vinha para salvar a pátria da desordem, dos políticos, dos partidos, esse flagelo nacional, o homem que dissolveu, que centralizou, que se convenceu de que podia governar sozinho, até que um dia lhe dispararam um tiro no Rossio e o mito se desfez em sangue. E penso que é sempre assim: os salvadores aparecem quando a crise aperta, quando há gente cansada, desiludida, à procura de uma solução fácil. Os salvadores aparecem, e o país rende-se, porque é sempre mais fácil acreditar que um homem pode resolver tudo do que aceitar que a democracia é um labirinto, que a política é difícil, que não há caminho sem tropeços.
Mas Portugal gosta de mitos. E o almirante percebeu isso. Percebeu que o país gosta de líderes, de homens que aparecem sem passado político, sem partidos, sem máculas, como se a ausência de percurso fosse um selo de qualidade. Como se não ter passado fosse uma garantia de futuro. Como se governar fosse um acto de autoridade e não de compromisso. Mas o problema de não ter passado é que também não há nada que garanta que o futuro será melhor. E por isso, ele fala. Ele fala de promessas por cumprir, de Governos que se desviam, de Presidentes que devem intervir. Fala e há quem o ouça, quem acene, quem diga que sim, que este é o homem certo, que precisamos de ordem, de clareza, de decisões rápidas.
E eu vejo-o, vejo-o de pé, a olhar para o rio, e penso: já vi isto antes. Já vi este filme, já conheço este enredo. Sei como acaba. Sempre do mesmo modo. Sempre na concentração do poder, sempre na erosão das instituições, sempre na promessa de um futuro que nunca chega. Porque a democracia não precisa de salvadores. Precisa de paciência. Precisa de persistência. Precisa de muitos a decidirem juntos, mesmo que às vezes decidam mal. Porque o que mantém um país à tona não é a força de um homem. É a força das suas instituições.
Fevereiro 2025
Nuno Morna

MUITO BOM!
ResponderEliminarMuito obrigado.
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