O Tempo das Mentiras
Mão amiga fez-me chegar um tempo de antena do PSD, um daqueles vídeos que aparecem entre as notícias sobre assaltos e as análises do último jogo do Marítimo, com uma voz pausada a enunciar a Madeira perfeita, a Madeira próspera, a Madeira pujante e bem governada, onde os dias correm tranquilos, onde o progresso é uma evidência, onde a vida melhora de ano para ano graças à bondade de uns senhores que passam o dia de fato e gravata a decidir o destino dos outros.
Ouvi. Vi. Depois, desliguei o ecrã e fiquei a olhar para a parede com um ataque de parvovírose.
O tempo das mentiras repete-se. Sempre as mesmas palavras, sempre os mesmos chavões, sempre a mesma construção gramatical estudada ao pormenor para dizer tudo e não dizer nada, para anunciar conquistas e varrer para debaixo do tapete as derrotas, para criar a ilusão de uma terra que existe apenas dentro daquele tempo de antena, uma ilha artificial feita de desenvolvimento e sucesso, mas que não diz o que realmente se passa cá em baixo, na realidade, onde as pessoas vivem, comem, pagam contas, fazem contas, desesperam.
Começam, como sempre, com um número: o ordenado mínimo. Dizem, com orgulho, que temos o maior do país. Como se isso fosse um favor. Como se a esmola fosse razão para a vénia. O que não dizem – e claro que não dizem – é que temos também o maior custo de vida, que o preço das rendas é uma espiral que engole ordenados inteiros, que uma ida ao supermercado exige cada vez mais cálculos, que pagar combustível, luz, água, gás e transporte público se tornou um exercício de malabarismo financeiro. Um ordenado mínimo alto significa pouco se tudo o resto for ainda mais alto. Mas isso não encaixa na narrativa.
Depois, a habitação. O milagre da habitação. Finalmente, a habitação. Falam do assunto como se tivessem acabado de descobrir o problema, como se, num rasgo de epifania, tivessem percebido que há gente sem casa, gente a viver em condições miseráveis, gente que precisa de um tecto. O que não dizem – e claro que não dizem – é que só há dinheiro para construir habitação porque 4.400 madeirenses morreram de COVID e a tragédia abriu os cofres da Europa. Durante dez anos, nada. Nem uma casa. Nem um terreno preparado. Nada. Agora, com o dinheiro já na mão, descobrem que o problema existe. Descobrem e comemoram.
E depois, os feitos. A grandeza dos feitos. Dizem que levaram água, luz e esgotos às casas das pessoas, como se fosse um gesto de generosidade, como se os madeirenses devessem estar gratos por receberem o básico, o mínimo, aquilo que qualquer governo decente deveria fazer sem precisar de o anunciar. Como se, noutros pontos do país, não se tivesse feito exactamente o mesmo. Mas aqui, nesta ilha, tudo tem de ser um milagre. Uma revelação governativa. Um dom concedido aos súbditos.
O hospital. O eterno hospital. A promessa do hospital. Falam dele, mas não dizem como vai ser gerido. Não dizem se vai ser público ou se vai meter privados pelo meio. Não dizem o que vai acontecer ao Nélio Mendonça, não explicam como vai ser a transição, não sabem - ou não querem dizer - quanto tempo ainda falta. Porque falta sempre tempo. No Porto Santo, anunciam a Unidade Local de Saúde, mas esquecem-se de dizer como vão atrair médicos, enfermeiros, técnicos. Como se um hospital fosse só paredes e não profissionais que o fazem funcionar. Como se fosse possível manter uma unidade de saúde sem gente para tratar os doentes.
A rede viária, os transportes, os túneis, as estradas, os viadutos. Orgulho. Auto-congratulação. Discurso de vitória. O que não dizem – e claro que não dizem – é que a Madeira quase faliu quatro vezes para que estas estradas existissem. Que estas mesmas estradas foram construídas com derrapagens, com dinheiro que não havia, com contas que se foram arrastando e que ainda hoje se pagam. Que cada quilómetro asfaltado teve um preço que ninguém sabe bem qual foi.
E a ligação ao Porto Santo? Apresentam-na como um prodígio, uma maravilha do serviço público. O que não dizem – e claro que não dizem – é que está entregue a um monopólio, que não há alternativa, que os portossantenses ficam sem transporte marítimo mais de um mês por ano, que a ilha vizinha, que devia ser tratada como parte essencial do arquipélago, continua a ser tratada como um parente afastado, uma coisa que se lembra ocasionalmente, um problema que se resolve com um anúncio e um sorriso forçado para a câmara.
E o emprego? O milagre do emprego? Sim, dizem que há. Dizem que os números são bons, que há cada vez mais gente a trabalhar. O que não dizem – e claro que não dizem – é que esses números são cozinhados com POTs e formações, que mascaram a realidade e servem para alimentar estatísticas que não correspondem à realidade. Dizem que o PIB cresce, mas não dizem que esse crescimento não se reflete nos bolsos da maioria. Que a riqueza continua concentrada nos mesmos sítios. Que há crescimento sem distribuição.
Os impostos. A redução de impostos. A promessa da redução de impostos. Mas nunca falam do IVA, o imposto que pesa no dia-a-dia, o imposto que afecta toda a gente, o imposto que, esse sim, faria diferença no final do mês.
E para terminar, a mentira final, a mentira sem vergonha, a mentira descarada: dizer que as obras do Hospital e da ULS do Porto Santo estão paradas porque o Orçamento não foi aprovado. Nem cretinice é. É simplesmente mentira.
Desligo o vídeo.
Lá fora, a ilha continua igual. O mesmo trânsito, as mesmas pessoas, os mesmos problemas. O mesmo cansaço nos olhos de quem trabalha, a mesma desesperança nos olhos de quem procura trabalho. O mesmo aperto no peito de quem conta os trocos. E eles, lá em cima, continuam a falar, a falar, a falar.
Março 2025
Nuno Morna

Comentários
Enviar um comentário