Regionais Madeira, mas que merda de campanha
Esta campanha foi uma doença longa, uma maleita pegajosa, um ranho eleitoral que se arrastou pelos dias como um resfriado mal curado, uma constipação da democracia, daquelas que começam com um espirro tímido e acabam em febre, mas nunca numa febre digna, alta, de hospital e urgências e médicos a correr pelos corredores a gritar palavras difíceis que não se entendem. Nunca numa febre de fazer delirar e ver Jesus Cristo à cabeceira da cama, mas numa febre manhosa, baça, um incómodo persistente que não chega a matar nem a curar, apenas fica ali, exausto e aborrecido, à espera que o tempo passe.
Falou-se de Autonomia, claro, porque é sempre preciso dizer a palavra “Autonomia” umas quantas vezes para que os jornais anotem e os eleitores, embriagados de cansaço, murmurem em uníssono “Sim, sim, Autonomia”, como se fosse um padre-nosso repetido em penitência, um mantra político para justificar o que já não se justifica, para fingir que não somos o que somos: um arquipélago distante e domado, umas ilhas com palmeiras de plástico enfiadas à força no centro das praças, uma terra que se habituou à sopa quente que vem de Lisboa e às migalhas que a Europa atira como se fôssemos pombos à porta de um velhote reformado. Mas ninguém falou a sério. Ninguém perguntou: que Autonomia queremos? Para quê? Com que dinheiro? Para viver de quê, se o que temos é turismo e terraços de hotéis e estrangeiros de pele avermelhada e peúgas brancas, a tirar fotografias aos mesmos jardins, às mesmas estátuas, ao mesmo céu azul onde um avião passa de tempos a tempos, levando os jovens que partem, que fogem, que nunca mais voltam?
A economia, coitada, foi tratada com a delicadeza de quem segura um prato partido para que os cacos não se espalhem. Ninguém quer admitir que estamos presos num círculo sem saída, que a Região vive de verbas que não são dela, que cada estrada nova é paga por um imposto cobrado algures na Europa, que cada evento patrocinado é um favor de Lisboa, que cada promessa é um suspiro de quem já não tem nada para prometer. Turismo, sempre turismo, hotéis e marinas e projectos imobiliários e promessas de novos mercados, promessas de ligações aéreas, promessas de um futuro que continua a ser o presente, só que um pouco mais velho e um pouco mais triste.
Empoderar os madeirenses? Mas alguém quer isso? Mas alguém deseja, verdadeiramente, que o povo se governe sozinho, que os cidadãos se façam donos do seu destino, que o poder deixe de ser um jogo de favores, de subsídios, de dependências? Nenhuma proposta para desburocratizar, para facilitar, para dar espaço a quem tem ideias e quer construir. Apenas a mesma engrenagem pesada, lenta, uma máquina que engole talento e cospe frustração, que suga ambição e devolve indiferença.
Na saúde, os doentes continuam a morrer nas filas de espera, mas ninguém se espanta. A educação forma jovens para empregos que não existem, mas ninguém se inquieta. A habitação tornou-se um luxo e os que ainda acreditam que podem comprar casa um dia acordam, olham pela janela e percebem que o sonho acabou, que a casa nunca será sua, que a terra que os viu nascer foi vendida a alguém que fala inglês, alemão, francês, qualquer língua que não a deles. Mas os políticos, na campanha, falam de fundos, de projectos, de programas, como se tudo se resolvesse com papéis assinados e fotografias sorridentes a cortar fitas vermelhas.
E os transportes? Os transportes são o mesmo de sempre: a ilha fechada sobre si própria, o monopólio aéreo que sufoca, o ferry que nunca chega, o carro que se torna obrigatório porque o autocarro nunca vem, a estrada que nunca acaba porque há sempre mais uma obra, mais uma rotunda, mais um troço para alcatroar. Mas sobre isso nada, silêncio, um vácuo ensurdecedor onde se esperava debate, onde se esperava indignação.
A fiscalidade? O costume. A Madeira precisava de um sistema fiscal próprio, de um modelo que a tornasse verdadeiramente competitiva, de um regime que permitisse crescer sem depender, mas isso exigiria coragem, exigiria uma vontade política que não existe, exigiria um plano que fosse além de arrecadar impostos e distribuir subsídios. Por isso, não se discutiu nada.
E a cultura? Nada. Zero. O vazio absoluto. Como se a Madeira fosse apenas paisagem e praias e mesas de restaurante com toalhas aos quadrados. Como se a cultura não fosse também economia, também turismo, também identidade. Como se cultura não servisse para nada além de encher páginas de programas eleitorais que ninguém lê.
Depois, os debates. Os debates que foram uma procissão de tédio, uma fila de almas penadas a repetir as mesmas frases, os mesmos gestos, as mesmas expressões de indignação ensaiada. As entrevistas, uma confirmação da pobreza das ideias, da pobreza dos candidatos, da pobreza da própria política. A propaganda, os cartazes, os tempos de antena: tudo feito sem alma, sem chama, sem vontade, como se já ninguém acreditasse que vale a pena. Como se até os que fazem campanha já soubessem que, no fim, nada muda.
E no final, qual cereja no topo do bolo, os eleitores. Os eleitores que ouvem, que olham, que assistem, e que sabem que no dia seguinte à eleição a vida será igual. Que a promessa de mudança é um refrão gasto, uma música velha que toca em loop nas rádios, uma melodia repetida até à exaustão, até que já ninguém escuta. Vão votar porque sim, porque têm de ir, porque sempre foram, porque os pais também foram, porque é isso que se faz. Mas sem esperança, sem convicção, sem acreditar que alguma coisa vá ser diferente.
Foi uma campanha? Foi. Mas podia não ter sido. Podíamos ter saltado este episódio, podíamos ter apagado estas semanas do calendário, podíamos ter feito tudo de outra forma, com mais ambição, com mais coragem, com mais futuro. Mas não fizemos. Fizemos isto. Esta coisa.
Uma campanha de nada, para nada, sobre nada.
Uma merda de campanha.
Março 2025
Nuno Morna
Muito bom!
ResponderEliminarObrigado.
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