25, Sempre e Sobretudo

No escuro quieto da babuge¹, onde o tempo escorre como a água que pinga das biqueiras de zinco das casas velhas da freguesia, uma coisa a latejar, primeiro fraquinha, como quem tem vergonha de nascer, começou a mexer-se por entre os lençóis rotos da terra. Era, talvez, a democracia. Ou o boato dela. Uma dessas palavras que se dizem com medo de serem escutadas. Como os ditos que se murmuram à boquinha da noite, à hora em que pássaros se calam.

Não foi cabrestada². Nem revolução. Foi coisa diferente. Mais abafada. Mais mole. Como se fosse um filho enjeitado nascido de madrugada num quarto de almanjarras³, com o telhado a pingar e um rádio velho a chiar canções da Emissora Nacional. Um sussurro. Um espirro. Um cansaço que alguém confundiu com grito.

Em terra de navegadores, como se todos tivéssemos embarcado no mesmo barco quando a maioria andava por conta do senhorio a remendar buracos nos poios, navegámos, sim. Por entre a maré feita de promessas e recados. Como se a liberdade se apanhasse com anzol de bicheiro e rede de camaroeiro, numa dessas manhãs de salitre e fumaça.

E naquela madrugada em que os soldados de farda amarrotada se deixaram guiar por um punhado de cravos e pelo medo de falhar, uma nova fornada de esperança, ainda meia crua como broa mal cozida, começou a desenhar-se nas caras do povo. Os poetas, sempre os poetas, vieram depois. Para escrever em cima da caiota⁴ do costume, embelezar o que era só trapalhada com metáforas tiradas do fundo das alforjas.

As ruas, essas veias entupidas dos bairros baixos, latejavam como quem tem febre. Cada passada, uma batida de coração aflito. Cada olhar, um capuz de raiva contida. Décadas de amarras e calabouços, de amoques⁵ e chorricas⁶, de gente feita à canga, e agora, de repente, aquele estouro mudo. Não se gritava: desabafava-se. Como quem tira a tampa a uma panela de pressão.

E os cravos, dizem, saíram dos canos frios das armas. Mas cá para mim foi só porque ninguém queria dar cabo de ninguém. Já se tinha visto muito sangue, em casa, nos ritos do silêncio, nas visitas da PIDE, no olhar das mulheres dos presos, e isso bastava. Daquela vez, o povo quis mudar sem levar chapada. E as pétalas vermelhas, tão fininhas como o véu da velhota na missa das almas, serviram para disfarçar o tremor.

Democracia não foi, nesse dia, decreto nem sermão. Foi coisa viva. Respirada com força. Tocada como se apalpassemos a primeira filha depois do parto. As praças cheias, os brincos⁷ a tocarem charambas, os homens com as camisas por fora das calças pela primeira vez desde a mocidade. E cada rosto, mesmo o dos de fácia⁸ de tonto e bigode da tropa, era parte da mesma bodega: um povo inteiro a sair da furna onde o tinham metido.

As levadas corriam, como sempre correram, mas naquela manhã pareciam lavar mais fundo. Carregavam os restos dos ditos antigos, das ordens velhas, dos sermões mimosos. As águas batiam nos muros das quintas com o mesmo som de sempre, mas agora ouvia-se ali uma música que não era do vento: era da vontade.

As serras, carregadas de floresta e de histórias antiguíssimas e romarias, assistiam. Como velhas tias nas janelas. E do mar, da infinitude do mar, subia um embate de marulhada⁹ que parecia um aplauso. Não ao governo. Mas à autonomia, essa coisa que ninguém entende bem mas toda a gente deseja como quem quer apanhar biscoitos caídos das prateleiras de cima.

Nesse dia, chamemos-lhe dia, embora tenha sido apenas a luz a bater diferente, a Madeira não foi só rochas e poios. Foi gente. E cada pinga de chuva, lágrima. E cada raio de sol, esperança a estalar por entre as nuvens. E o francelho, ao sobrevoar os loureiros da abaixo da Encumeada, parecia desenhar no céu uma promessa que nem os padres conseguiam dizer sem se engasgar.

Nos vales, nos sítios onde só os mais teimosos plantam milho, a liberdade apareceu assim: sem gritaria. Um sopro. Um abraço. Uma palavra dita a medo. A vontade, já antiga, de tirar a corda do pescoço e pôr a cabeça no colo de alguém que não nos mande calar.

E depois… depois veio Novembro. Como sempre vem. A cortar as fantasias com a tesoura das realidades. Os cravos, já murchos, voltaram às mãos do povo. E as mãos do povo voltaram ao trabalho. E os que queriam fazer da liberdade um novo açaime, com outros donos e novos caciques, engoliram em seco.

Abril em Novembro. Uma espécie de fé fora de época. E a terra, mesmo a mais agreste, mesmo a que só dá feijão e saudade, latejava. Como quem quer dizer que a primavera não tem mês certo. Que pode vir quando a gente decide. Mesmo que seja com sapatos rotos. Mesmo que seja só para dizer: ainda cá estamos.

Porque Abril, cá por mim, não é só mês. É teimosia. E Novembro, que tanto tem de chuva como de juízo, deu-lhe casa. E ficou esse abraço. Entre o sonho e o chão.

25 de Abril sempre. 25 de Novembro sobretudo. E as levadas, se for preciso, levam-nos até lá.

¹linha de maré ²acto irreflectido ³móveis mal ajeitados ⁴credulidade ⁵loucura ⁶diarreias ⁷grupo de cantadores de romaria ⁸cara ⁹ondas a bater na costa

Abril 2025

Nuno Morna



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