A Cartilha do Conformismo

A política, como toda a gente mais ou menos decente sabe, não é feita de ideias, nem sequer de opiniões. É feita de carreiras. Carreiras longas, cautelosas, tediosamente previsíveis, que se constroem com uma habilidade sub-reptícia para não incomodar ninguém com poder, e com uma vocação sincera, quase religiosa, para a subserviência. Pensar, isto é, pensar por conta própria, não faz parte do currículo. Pelo contrário. Pensar é perigoso. Pensar desvia. Pensar perturba a ordem do rebanho.


As direcções partidárias, independentemente da sigla ou da ideologia que fingem representar, são hoje aquilo que sempre foram: clubes fechados, compostos por indivíduos que se dedicaram, desde tenra idade, ao cultivo meticuloso do servilismo. E servilismo é, no fundo, o único talento que verdadeiramente conta. Quem pensa fora da caixa - expressão aliás idiota, importada de algum seminário de auto-ajuda empresarial - não só não é bem-vindo como é alvo de uma espécie de profilaxia interna, silenciosa mas eficaz, que o isola, o ridiculariza, e o impede de ascender. Não por incompetência, que essa abunda nas cúpulas, mas por insubmissão. E isso, nós tempos que correm, é um pecado capital.


Não se quer quem pense, muito menos quem pense melhor. Quer-se quem repita. Quem decore a cartilha, quem diga “sim” com convicção e “não” com constrangimento. A norma é a mediocridade embrulhada em lealdade. O modelo é o acólito. A política tornou-se uma espécie de sacristia laica onde os fiéis competem para acender as velas ao chefe. De preferência sem qualquer ambição de as apagar.


A coisa pública, reduzida a esta lógica de pequeno tráfico de lugares e de favores, gera um tipo humano particularmente insuportável: o profissional da política. Não aquele que estuda, que pensa, que escreve ou que debate. Mas o que sabe exactamente a quem agradar, quando calar-se e como evitar toda e qualquer ideia minimamente disruptiva. O que quer apenas um gabinete, um assessor, e o carro do Estado com motorista. O que, se for preciso, cita Aristóteles sem o ter lido, defende a Constituição sem a compreender, e invoca os pobres enquanto almoça no Gallo d'Oro.


Este tipo humano, que hoje povoa o Parlamento, as Secretarias e Direcções Regionais, as autarquias e, sobretudo, os directórios partidários, não quer poder, quer usufruir do poder dos outros. Quer viver à sombra, onde é confortável, onde não se exige coragem nem génio, apenas o instinto de sobrevivência que se aprende nos corredores da juventude partidária. E assim se explica o estado lastimável da nossa democracia e da nossa Autonomia: não é que os eleitores sejam ignorantes ou que o povo esteja apático, é que ninguém, com um mínimo de espírito livre, se aproxima da política sem ser esmagado, ignorado ou lentamente digerido pela máquina.


A política tornou-se um centro de emprego com discurso. Um teatro de sombras. Uma paródia melancólica de si própria. E quando alguém, por acidente ou ingenuidade, ousa dizer o óbvio - que o sistema está podre, que os partidos se tornaram clubes de amiguismo, que o talento é uma ameaça - é imediatamente acusado de radicalismo, de demagogia, de populismo ou, pior ainda, de elitismo. Como se fosse crime querer qualidade. Como se pensar fosse um atentado contra a democracia.


O resultado está à vista. Uma elite política que não é elite, um debate público que não é debate, e uma sucessão de governos que gerem o país com o entusiasmo burocrático de um gestor de condomínio. A política está domesticada, normatizada, neutralizada. E, como tudo o que se domestica demais, tornou-se inútil.


A este panorama já de si deprimente, feito de carreiristas melífluos, fidelidades caninas e uma aversão quase pavloviana ao pensamento, juntaram-se agora, como se a tragédia precisasse de farsa, as novas figurinhas. As tais que, vindas sabe-se lá de onde (normalmente de um brunch ou de um painel patrocinado por uma marca de pseudo-influência), aparecem de repente, como cogumelos depois da chuva, anunciadas com pompa como “a nova geração da política”.


Não têm percurso, nem doutrina, nem sequer aquela coisa rudimentar que se chama experiência. Mas leram um livro em tradução automática e reumida, três crónicas de opinião (de preferência uma da Clara Ferreira Alves, outra do Miguel Sousa Tavares e uma terceira, para desenjoar e porque pequenina, do MEC), e têm um primo que trabalha em marketing político e lhes ensinou a dizer “narrativa” com ar compenetrado. É o suficiente.


De um dia para o outro, tornam-se “estrategas”, “consultores”, “pensadores” e, em casos mais graves, “influenciadores políticos ou sociais”. É vê-los, com os seus blazers sem forro e as suas expressões muito sérias, a falar de “engagement”, de “brand pessoal” e de “reposicionamento discursivo do centro”. Não sabem quem foi Sá Carneiro, confundem Hintze Ribeiro com um tipo da logística, e acham que a Constituição é um PDF com demasiadas páginas. Mas têm seguidores. E, neste tempo de idiotia democrática e adoração do instantâneo, isso chega.


Para estas criaturas, que não distinguem John Locke de um actor de filmes da Marvel, a política é uma plataforma, não uma convicção. Um meio para se fazerem notar, não para mudar coisa alguma. O objectivo não é servir o interesse público, nem sequer discutir ideias: é aparecer, ter opinião sobre tudo e, se possível, ser convidado para um podcast. São vazios com wi-fi.


A tragédia, como sempre, não está apenas neles. Está em quem os leva a sério. Em quem, nas direcções partidárias exaustas, os vê como novidade salvadora, como sangue novo, como sinal de modernidade, quando não passam de cosmética reciclada, talento reciclável e presunção em estado puro. Não pensam, debitam. Não sabem, mas explicam. Não têm dúvidas, apenas estratégias.


E, com isto, o ciclo completa-se. A política, já empapada em mediocridade conformada, acolhe agora com entusiasmo estas luminárias de ocasião, que confundem buzzwords com teoria política e acreditam, com uma fé que faria inveja a qualquer beato, que a política se faz nos templates do Canva e se ganha no Instagram.


Dantes, pelo menos, os medíocres sabiam que o eram. Agora, dão entrevistas.


Abril 2025

Nuno Morna





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