Açodados pela Miséria, Ajoujados pelo Sistema
in REDE SOCIAL, DN Madeira 21 abril 2025
[Açodado: enraivecido;
Ajoujado: curvado sob grande peso]
Uma leitura dos documentos do “Estudo de Caracterização da Pobreza na Região Autónoma da Madeira”.
A miséria na Madeira, e pra quê tapá-la, é um sarro peganhento, um trapo entranhado, com bafo a sopa de trigo aguada e remédio fora da validade, que se cola à pele como a comia¹ roçada nas costuras de quem já viveu muito e mal. Fala-se pouco dela, como se fosse falta de vergonha, como se a pobreza fosse zaralho ou desmazelo, e não esta cousa antiga e viscosa que se herda como a dívida dum enterro, uma dor nas cruzes, ou uma zimpla² mal sarada. A Madeira dos postais - das achadas, das ponchas e do vinho seco - é, por dentro, uma ilha lavrada a cicatrizes, uma velhança inchada, com vaquetas³ perras, os joelhos a gemer e um goguento⁴ crónico que nem xarope resolve.
A pobreza cá não berra, não zanga, não faz zarabulho⁵. É mansa, como bicho apalpado que sabe que é escusado espernear. Senta-se, encolhida, a olhar o chão, com as mãos no regaço, à espera da carrinha da Casa do Povo ou do cabaz da junta. Aprende-se a estar quieto. Aprende-se que protestar só dá zoada, que pedir é feio e que gritar não paga a renda. E o Governo Regional, esse urcão⁶ de fato engomado e bico redondo, governa como quem trata dum rebanho de carneiros mansos, distribuindo conquibos⁷ como quem larga migalhas, comprando sossego com promessas de papel que o vento leva. A Autonomia, essa palavra cheia de pompa, deu em pretexto pra um Estado dentro do Estado, onde tudo se resolve entre o peixe-espada e a sopinha do almoço de domingo.
O pobre madeirense sabe portar-se. Agradece a esmola, sorri na fila do Instituto, conhece o horário da junta e o nome do vendeiro. Sabe que estudar é coisa de fora, que trabalhar é castigo e que fugir para o estrangeiro é só trocar o cheiro do mar por cheiro a fritura e a tubo de escape. E os que ficam, os que se vão mirrando sozinhos nas casas de pedra, os que vivem em cave sem janela, os que esperam vinte anos por uma chave que nunca vem, esses fazem parte da paisagem como os muros de pedra ou as veredas escorridas pela chuva. Estão lá. Sempre estiveram. Sempre estarão.
E os planos contra a pobreza? As tais estratégias? São como craqueiras: redes feitas de palavras bonitas que não apanham nada. Papéis com nomes compridos, cheios de cores e promessas, mas que na venda do dia-a-dia não valem mais que uma cartola em dia de trovoada. No terreno, nada muda. A pobreza continua de chinela rota, a pedir fiado ao vendeiro, a ir ao centro de saúde só quando a dor passa de dor de vazio a coisa séria. O RSI chega para o arroz e o gás, mas não tapa os buracos do tecto nem aquece a casa no inverno. E o futuro? O futuro é uma cousa que ainda não chegou à serra. Fica sempre para a próxima camioneta.
A pobreza cá não é só conta de estatística. É o corpo que se encolhe, a fala que hesita, o olhar que não fixa. É vergonha de abrir a boca. E foi nisso que se especializaram os senhores da governação: em pôr a pobreza a andar de mansinho, sem fazer cramação. Criaram um sistema que não mata a miséria, mas doma-a. Que a trata como cão preso ao pé dum osso: pouco, mas o suficiente pra não fugir. Onde saber ler é menos importante que saber zongar⁸ com o vereador. Onde esperteza é saber quando ir bater à porta da junta.
E a esquerda? A direita? Todos à volta da mesma mesa, a mastigar frases. A pobreza vira teoria, vira frase bonita pra pôr no jornal. Ninguém calça as sapatas rotas de quem mora no Porto da Cruz, ninguém vê a vergonha de pedir ao padre comida pros filhos. Ninguém sabe o que é escolher entre a luz e os remédios do neto.
Mas não se enganem. Esta pobreza, que parece dormente, pode acordar. Um dia, os filhos dos pobres vão fartar-se. Vão perguntar. Vão renhir. E talvez nesse dia deixem de baixar a cabeça na junta, e comecem a pedir contas. Talvez deixem de sorrir por uma ajuda e comecem a exigir direitos. Talvez nesse dia, esta paz de fachada, feita de luzinhas e cruzeiros, caia como parede velha num dia de chuva.
Até lá, vai-se continuando. Com os turistas, com as fotos, com a poncha. Escondendo os pobrezinhos atrás dos canaviais e das obras do PRR. Varre-se a pobreza pró fundo da venda, como se fosse trapo velho. E os pobres? Continuam pobres. Mas lavadinhos. Calados. Gratos. Como aprenderam desde pequenos.
¹casaco de aba comprida ²pancada ³pernas finas ⁴tosse ⁵desordem ⁶gordo ⁷esmolas ⁸falar em voz baixa
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