Boletim Trimestral de Estatística - 4.º Trimestre 2024
(Autonomia Sem Alma)
A Madeira tornou-se, há muito, numa espécie de feudo tropical, uma colónia de si própria, mantida artificialmente por um sistema político que a alimenta para que não se revolte, mas que a mantém de joelhos para que não pense. O Boletim Trimestral de Estatística, esse monumento de maquilhagem burocrática, é apenas mais um capítulo no romance da decadência. Nele se escreve, com reverência e tecnocracia, a narrativa de um progresso que não existe, de um crescimento que não se vê, de uma realidade cuidadosamente higienizada para que nenhum número ofenda a sensibilidade do regime.
Diz-se que a economia regional cresceu durante 45 meses consecutivos. Ninguém se ri. Cresceu o quê, exactamente? Cresceu quanto? 1,1% no final de 2024. Um número patético, microscópico, que noutro país, em qualquer democracia que se levasse a sério, seria motivo de alarme. Aqui é motivo de celebração. Cresce-se, aparentemente, por decreto - ou, melhor dizendo, cresce-se pela manipulação do verbo “crescer”, que se aplica a tudo e a nada. O que não se diz, o que nunca se diz, é que este crescimento é alimentado por transferências de Lisboa, por fundos europeus que já ninguém fiscaliza, e por uma economia de serviços inchada de turismo, onde não se produz nada, onde não se investiga nada, onde não se inventa nada. O grosso da actividade económica da Madeira resume-se a servir à mesa, fazer camas, carregar malas e declarar IVA a 22%. Tudo o resto é espuma.
A taxa de desemprego, lê-se, está nos 5,7%. Que bonito. Mas o número, como tudo neste boletim, mente. Mente por omissão. Mente por disfarce. O desemprego não desapareceu, foi apenas arquivado. Os desempregados são hoje reclassificados como “ocupados” em programas de ocupação temporária, o que não passa de modernos trabalhos forçados com nomes mais suaves. Outros estão “em formação”. Outros ainda são estagiários eternos, pagos pelo Estado a prazo certo, para empresas que não têm qualquer intenção de os contratar. É um sistema de ilusionismo económico: desaparece-se o desemprego sem o resolver. Desemprego zero, esperança zero.
A pobreza, essa, não é medida, apenas gerida. A remuneração média bruta é de 1.683 euros. Abaixo da média nacional, como sempre. O que nem seria um mal em si, se o nosso custo de vida não fosse muito maior que o do continente. E mesmo assim, o número é enganador: inclui quadros superiores e salários do sector público. A esmagadora maioria da população activa vive com valores muito inferiores, sobretudo nas zonas rurais e nos empregos ligados ao turismo. Paga-se mal e exige-se silêncio. Quem se queixa é “invejoso” ou “negativo”. A Madeira não gosta de quem diz a verdade. Gosta de quem finge.
A habitação é um escândalo que já nem se tenta esconder. Os valores das transacções sobem 187% num trimestre. As rendas disparam. Os bancos fazem avaliações inflacionadas. Os madeirenses já não compram casa, competem por um canto. Os jovens são expulsos dos centros urbanos. Os pobres vão para a periferia ou para a emigração. Mas a Região está feliz: vende casas como quem vende souvenirs. Um povo que já não consegue habitar a sua própria terra. Esta é a verdadeira conquista do turismo: desalojar os residentes sem lhes tocar.
A agricultura e a pesca estão em coma induzido. A banana caiu. O leite caiu. Os ovos caíram. A pesca desaparece. Tudo afunda. E ninguém, absolutamente ninguém, parece importar-se. Os governantes subsistem com notas de imprensa recicladas, subsídios pontuais e discursos de circunstância. A terra já não vale nada, apenas os metros quadrados para urbanizar. Os pescadores tornaram-se figurantes de festivais folclóricos. O mundo real morreu e foi substituído por brochuras de promoção regional.
E claro, o Estado continua a crescer. Não porque se precise dele, mas porque se precisa de votos. O emprego público é a moeda de troca. A máquina administrativa é gorda, lenta e incompetente, mas é o único seguro de vida num sistema político que já não governa: distribui. A administração pública regional é um condomínio de famílias, de compadrios, de amizades de infância. Os concursos são fantochadas. As chefias são prémios de lealdade. A Região é governada como uma quinta: há um dono, uns criados, e os outros que não interessam.
As empresas? Há mais constituições do que dissoluções. Milagre. Mas ninguém pergunta que empresas são essas. Ninguém quer saber se duram um ano, se criam empregos, se produzem seja o que for. Se são empresas Fénix que canibalizam outras. O importante é o número. A aparência. Um boletim cheio de percentagens bonitas para ser mostrado por aí. A economia madeirense é uma economia de fachada: cheia de micro-empresas, micro-empregos, micro-ambições. Vive-se de subsídios, projectos, consultorias inventadas. A verdadeira iniciativa está morta.
Este boletim é o retrato de um regime gasto, previsível, sem ambição nem pudor. Um regime que governa como se a Madeira fosse sua propriedade privada. Que administra o presente sem pensar no futuro. Que reduz a política a contabilidade criativa e as pessoas a números para compor estatísticas.
A Madeira é hoje uma terra resignada. Sem elites pensantes. Sem oposição real. Sem projecto. Vive-se ao dia, de boletim em boletim, de obra em obra, de festival em festival, de arraial em arraial. A economia estagna, a população envelhece, os jovens partem, os velhos esperam. E os que ficam, vivem entre a amnésia e a rendição.
Ninguém parece ter vergonha. E isso talvez seja o mais trágico de tudo.
Março 2025
Nuno Morna

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